SOBRE ULTRA-VIOLETAS E ULTRA-VIOLENTAS

Caio Almendra
12 min readJan 16, 2020

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O queermuseu, o MBL, os dogmas sociais e os discursos anti-dogmas

O neurofilósofo John Searle, em seu afã de distinguir consciência de inteligência, constrói uma parábola interessante. Imaginemos uma mulher que não consiga ver cores, que veja em preto e branco. Atormentada e fascinada por sua condição física, ela passa a estudar intensamente o conceito de cor, de espectro de ondas, de coloração de pigmentos e etc. Após anos de estudo, não há especialista melhor em cor do que ela. Contudo, nenhum dos seus conhecimentos a permite saber o que é ver uma cor. Ela sabe qual a faixa eletromagnética de todos os tons de azul, quais combinam e quais não, mas é incapaz de saber o que é ver a cor azul.

Quando estudei Searle brevemente, pensei em outro exemplo bastante pertinente. Nós sabemos que os beija-flores veem os espectros de onda ultra-violeta, que nós humanos somos incapazes de ver. Apesar de sabermos que o beija-flor vê tal cor, somos absolutamente incapazes de saber que cor é o ultra-violeta. Todas as representações gráficas da cor ultra-violeta, em filmes, artes, videogames, a representa como a cor violeta(curiosamente, a cor “infra-vermelho” costuma ser representada pela cor verde, dado que fotos infra-vermelho são representadas em escalas de verde). A noção sobre espectro, o estudo sobre cor, não supera o vivenciar o fenômeno cor(usei a palavra “vivenciar”, já podem queimar o pós-moderno aqui). Existem “cores”, portanto, que somos capazes de entender sem jamais vivê-las.

Com o caso do Queer Museu, muitos vieram comentar sobre como a “censura” ao Santander foi similar à “censura” ao Itaú Cultural no caso do blackface, ou outras que a esquerda teria cometido. O correto, portanto, seria vivermos em uma sociedade sem dogmas, onde tudo pudesse ser discutido. Aqui, quero especificar um pouco o meu uso do termo “dogma”. Dogmas são espaços discursivos que superam o conceito de “consenso” e, assim, não são discutidos ou discutíveis. Tornam-se, assim, não-espaços de conversação, pressupostos básicos de toda conversa. O discurso anti-dogma liberal entende que não devem haver tais dogmas e pressupostos e que, portanto, toda e qualquer coisa deve ser discutível.

A primeira crítica que faço a tal discurso é um tanto simples: todas as sociedades sempre tiveram e sempre terão dogmas. Na complexa disposição social sobre nossos costumes, cultura e política que forma a multitude de valores sociais comuns, dogmas formam o pilar mais interno. Tentar estudar uma sociedade a partir apenas dos discursos que circulam por ela, ignorando quais são os discursos impossíveis de circular, é uma tentativa parcial de estudo e irremediavelmente fadada ao fracasso. Sob o veio da invisibilidade, da impossibilidade do diálogo sobre, está justamente o que é mais elementar de uma sociedade, um dos componentes mais relevantes do que compõe tal sociedade. Grande maioria das vezes o que não falamos diz muito mais sobre o que somos do que o que de fato falamos.

É ridiculamente fácil dizer que “os islâmicos atrasados não permitem a representação gráfica de Maomé”. O complicado é visualizar e tecer comentários sobre os dogmas presentes em nossa própria sociedade. Isso acontece porque os dogmas são como a cor ultra-violeta: completamente invisível para nós, facilmente visível para os beija-flores, esses aliens que sabem qual a cor do ultra-violeta.

É preciso entender como os dogmas de uma determinada sociedade ou grupo social são invisíveis para a própria sociedade ou grupo social. Na própria construção de um dogma, ou seja, de um espaço do não-discurso, está a invisibilidade. Um dogma só é verdadeiramente um dogma, e não uma mera proibição, quando ele se torna de tal forma entranhado que não conseguimos sequer lembrá-lo como dogma. Dogma se difere de proibição ou censura justamente por ser coberto por tal véu de invisibilidade, enquanto essas outras necessitam de um agente externo e violento que as imponha, no caso da censura, ou um processo não-violento de negação, no caso da proibição(em alguns sentidos, proibições são ameaças que, descumpridas, geram um ato violento(censura) mas cabe fazer essa divisão de vez em quando).

Assim, conseguimos ver muito bem o dogma islâmico de não se desenhar Maomé. A mera menção a esse dogma nos acende uma luzinha em nossas cabeças que nos leva a pensar em uma sociedade onde nem tudo é discutível. Porém, e os dogmas das sociedades ocidentais em que estamos incluídos, como os vivenciamos? Ora, nossa sociedade tem como dogmas, para citar os exemplos que dei hoje, não se discutir a existência ou não do Holocausto, não se discutir se é correto ou não cometer um estupro ou ter escravos, ser avesso a dor e a morte acima de tudo e etc. A existência do Holocausto, ser errado o estupro e ser absurdo ter escravos são dogmas ocidentais, a mera negação deles nos causa repulsa e rejeição. Qualquer um que infrinja algum desses dogmas na nossa frente é visto como um alien e seu discurso como uma asneira ou insanidade, um discurso que não faz parte da discussão social, do estado da discussão.

Eu consigo me lembrar de uma situação em que tive que deixar um táxi porque minha acompanhante preferiu sair dele do que continuar ouvindo o discurso racista do taxista. Mas eu não consigo sequer imaginar qual espécie de indignação ou horror vive um islâmico que vê uma caricatura de Maomé.
De novo, os dogmas, por assim dizer, são os nossos ultra-violetas: vemos os dogmas dos outros mas jamais somos capazes de vivenciar; não vemos eles em nós mas os vivenciamos plenamente.

Utilizei desses exemplos que envolvem duas sociedades distintas mas, em certa medida, esse fenômeno também acontece intra-sociedade(como no exemplo pessoal do taxista). Dentro de uma mesma sociedade, dois grupos sociais distintos podem ter dogmas diferentes ou até antagônico. E faz parte da disputa política construir dogmas que reflitam os próprios valores. O próprio dogma contrário ao estupro é uma construção constante de movimentos de direitos das mulheres e entra em conflito com o patriarcado e seus dogmas, como da servidão ao marido. O sentido da disputa política é, em muitos momentos(mas não em todos…), a disputa por substituir, trocar, o dogma vigente por um dogma antagônico que vem de um devir.

Assim, a que serve o discurso anti-dogma? Bem, ele tem duas funções, ambas intrínsecas do discurso do liberalismo. Para discutir melhor tais tendências do discurso liberal, vou valer-me de uma comparação com outro discurso liberal que gera uma falsa equivalência entre esquerda e direita: o pacifismo liberal. Quando vemos casos como o de Charlottesville, quando grupos de extrema-direita violentos vão às ruas e cometem um atestado terrorista via atropelamento, o discurso de Trump, e de muitos liberais…, é que “houve violência dos dois lados”, numa tentativa de falsa
equivalência.

Ora, a violência ser um fenômeno a ser combatido é um consenso importante… mas, que violência? Pensando uma sociedade desigual como a nossa, quanto de violência é necessário para preservar o estado atual de coisas? Em uma sociedade que ainda sofre com a endemia de fome, quanta violência é necessária para que comida seja exposta em nossas vitrines? Qual das duas coisas são “violentas”, a vitrine que exibe comida para quem nada tem a comer ou a pedra que um mendigo arremassa contra essa vitrine?
O discurso que afirma haver “violência dos dois lados” e defender que a atual sociedade é não-violenta, serve a quê e a quem? Primeiro, ele serve para invisibilizar a violência constante e constitutiva de nossa sociedade. Segundo, ele presta-se a negar a violência capaz de mudar a sociedade.

O discurso anti-dogma tem as mesmas duas funções, apenas trocando “violência” por “dogma”. O principal viés do discurso liberal em uma sociedade liberal como a ocidental é tentar reduzir as tensões sociais e políticas e negar os conflitos fundantes da nossa sociedade, como forma de preservá-la. Ao afirmar que nossa sociedade não tem dogmas, nela tudo se pode discutir e etc, o discurso liberal preserva nossos atuais dogmas como invisíveis. Em essência, a afirmação de que não há nem deve haver dogmas funciona como uma proibição adicional a que não se discuta os dogmas da nossa própria sociedade. Além disso, esse discurso presta-se a negar a formação de novos dogmas e, portanto, impedir a vitória dos dogmas oriundos de neófitos, devires, de transformações sociais profundas.

A segunda crítica à ideia de “sociedade sem dogmas” não está no fato dela jamais ter sido atingida, mas de se desejamos que ela seja. Eu, por exemplo, sei que todas as sociedades tiveram classes, exploradores e explorados, mas ainda preservo o sonho de uma sociedade sem classes. Agora, queremos uma sociedade sem dogmas?

Acredito que uma sociedade verdadeiramente sem dogmas é mais do que caótica. Ela simplesmente não consegue atingir ao que ela se propõe a atingir, uma suposta liberdade de expressão. Essa não é uma sociedade com mais liberdade de expressão, mas, pelo contrário, sem liberdade de expressão alguma. Imaginemos uma sociedade sem nenhuma forma de consenso prévio sobre valores sociais e relações humanas. Ora, eu entendo que são esses consensos prévios que formam o próprio pulso de onde vem todos os discursos, o próprio sentido que nos leva a conversar. A comunicação, me parece evidente, nasce de um desejo de construir algo em comum com os demais. A comunicação jamais seria possível se objetivasse, apenas, a obtenção dos próprios objetos de desejo, para isso já temos a violência com sua estupenda eficiência. Dessa forma, os discursos partem dos próprios consensos em comum, em especial de valores sociais e comuns.

Eu não desejo viver em uma sociedade onde, quando se encara um drama social grave, haja quem negue que o drama sequer é um drama, que a dor é relevante. As boas discussões são aquelas que, de alguma forma, nascem da percepção comum sobre um problema e não sobre existir ou não um problema. Quando discute-se o Holocausto, quero pensar que as respostas buscadas dizem respeito a o que aconteceu, como aconteceu e o que fazer para evitar que algo similar aconteça, e não um eterno diálogo sobre se aconteceu ou se era errado ou não acontecer.

O exemplo pode parecer absurdo para toda nossa sociedade, mas é o equivalente moral para os defensores dos direitos das mulheres de se viver em uma sociedade em que se deva sempre afirmar que a vítima não é culpada pelo estupro. O devir-mulher almeja a construção de um dogma diverso da atual cultura do estupro.

Em outras palavras, eu quero viver em uma sociedade com dogmas, cuja função seja permitir o fluxo de discursos para superação de problemas comuns. No meu caso, uma que busque uma sociedade sem explorados, sem violência institucional e que debata livremente como superar os problemas em comum. Eu acredito que só atingiremos tal sociedade com a criação de dogmas(dado que uma sociedade que consegue tais objetivos pela censura e violência permanente não é nenhuma utopia), tais como, ser errado explorar o outro, ser errado machucar o outro e etc.

A questão, portanto, não é como “os dois lados(esquerda e direita) tem dogmas”. Todos os grupos sociais terão seus dogmas(inclusive quem afirma uma suposta equivalência entre esquerda e direita pela presença de “dogmas e censuras”, é repleto de dogmas), algumas disputas políticas sempre se dão via conflito entre dogmas antagônicos. A questão vira pensar quais dogmas, como eles são escolhidos e quais são os seus conteúdos. Qual o processo político que faz com que uma ideia passe de minoritária à majoritária, de majoritária à hegemônica e, finalmente, chegue ao status de dogma, de fato não-discutível?

Esse ponto da passagem do violeta ao ultra-violeta, do discutido com intensidade ao consenso não-discutido por completo, deve ser estudado com carinho. Durante todo o processo de construção de tal momento, a disputa política se dá em formato debate, uma ideia é exposta por uma parcela social e outra a responde e critica. E isso se difere terrivelmente de “censura”, até por compor uma parcela relevante da liberdade de expressão, qual seja: a liberdade de expressar descontentamento com o expressado por outro. Quem confunde crítica à opinião alheia com censura, são justamente grupamentos autoritários como o MBL.

O embate de discursos, portanto, é parte da liberdade de expressão. Em qualquer forma comunicativa, algo é dito, alguém diz que não gostou do que foi dito, alguém diz que não gostou do que disse quem não gostou e vida que segue. Censura não tem absolutamente nada a ver com isso: censura é o encerramento do discurso mediante violência. O boicote do MBL não foi “censura”… mas é livremente criticável. O Santander reagiu à crítica com uma proibição, algo que extrapola o espaço do debate(afinal, estamos discutindo a liberdade de expressão EM UM BANCO). Notem, quem tem o poder de proibição de discursos não é a população mobilizada, mesmo a com inspirações fascistas, mas o banco, o detentor de poder econômico que, portanto, define quais são os discursos que circulam e quais os que não circulam(a Lei Rouanet é uma lei liberal justamente por permitir que empresas determinem quais peças de arte circulam, apesar do dinheiro ser público…). E, em certo ponto, acabam determinando mais quais os dogmas de nossa sociedade que qualquer grupamento político organizado, de esquerda ou direita.

Durante o processo de construção de um dogma, um discurso tal é visto como inadequado por uma parcela da sociedade e toda menção a tal discurso é respondido com um discurso antagônico. Note, grupamentos como o MBL e demais fascistas consideram a mera resposta crítica a ideias como uma “censura”, como no caso do “fact-checking”. Após intensos embates entre discursos antagônicos, um vai se apequenando, sendo visto como absurdo por uma parcela crescente da sociedade, até que chega ao desaparecimento, ao espaço não-espaço de um dogma.

Esse é outro ponto importante na comparação com pacifismo liberal e discurso liberal anti-dogma: ambos escondem o estado atual da sociedade. Enquanto o pacifismo liberal esconde a violência constante que essa sociedade exige para se manter como é, o discurso anti-dogma esconde o quanto de dogmas nossa sociedade já tem. Quantos discursos são absolutamente impossíveis nessa sociedade? Eu já citei casos extremos de imoralidade, como o holocausto, a apologia ao estupro e etc. Mas existem os casos considerados meramente indizíveis, irracionais(como se houvesse racionalidade plena: na lição de Deleuze e Guattari, todos os sistemas racionais são fundados em cima de irracionalidades).

Estamos falando de liberdade de expressão no interior de um BANCO, o que torna o foco para algo óbvio: em uma sociedade onde a desigualdade financeira tudo determina, quanto mais dinheiro se tem, mais se pode expressar. Ao fim e ao cabo, todo rolo acontece porque, logo no início dos embates de discursos sobre o que era a tal exposição QueerMuseu, o banco vale-se de seu poder financeiro e impõe uma proibição à exposição. Depois, vale o predicado do Fredric Jameson em Arqueologias do Futuro: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Com o complemento do Zizek: “hoje, tudo é possível em matéria de tecnologia, podemos nos imaginar vivendo para sempre, downloadeando nossa consciência para máquinas, colonizando Marte e fazendo operações plásticas para ficarmos com dois pênis, esses são campos do “possível”; vá sugerir um aumento dos impostos para bancar a saúde pública universal e logo se apressam para dizer que é impossível, que vai acabar com nossa eficiência e competitividade, que será o fim do país”. Mais do que os dogmas a respeito de holocausto e similares, o principal dogma que esse discurso liberal corre para tornar ainda mais invisível é a complicada relação entre poder financeiro e controle das narrativas, o elemento basilar dessa campanha.
Agora, se conjecturarmos qual o sistema ideal de formação de dogmas e quais são dogmas socialmente desejáveis e quais não são, aonde chegaríamos?

Eu queria lacanianamente parar aqui e deixar a pergunta no ar para suscitar o debate. A verdade, porém, é que quando já se está na quinta página de um texto que irá apenas para o facebook, não existe corte lacaniano possível(rs).

Eu honestamente penso que uma sociedade livre é aquela cujo fluxo de discursos livre determina quais dogmas existem e quais devem ser superados. As principais discussões sobre o caso do Queermuseu são sobre (1) por que diabos esse banco tem o poder de determinar o que não é visto e (2) o que no conteúdo da exposição teria qualquer razão para não ser exposto? A resposta para o 1 é capitalismo, filhos, sistema onde o poder financeiro compra todas as possibilidades democráticas. Hora de pensar em superá-lo. A resposta do 2 é: nada. E é isso que precisamos fazer: discutir menos como o MBL “censurou” uma peça(deixando claro que, se for verdade que o MBL mobilizou pessoas para agredir quem entrava na exposição, como alguns relatos disseram, o caso é de censura mesmo) por criticá-la e mais como as críticas do MBL são absurdas.

Estamos discutindo liberdade de expressão de peças pedófilas, ao invés, simplesmente, de discutir como não há pedofilia nenhuma, como a defesa de uma criança invisível, assexuada e onisciente, inocente e cheias de maldades, é absurda.

Aqui, para me fazer melhor entendido, vou citar um exemplo longíquo. Tem uma cena do Shrek que faz referência à ereção. O vilão Lorde Farquaad deitado na cama está vendo no espelho-mágico as princesas pretendentes, em uma espécie de “The Bachelor” do mundo da fantasia. Quando olha uma delas, ele se anima e levanta o lençol para olhar para o próprio pênis, dando a entender que a imagem da mulher lhe causou uma ereção

Qual a reação conservadora a uma cena dessas? “Meu deus, mas esse é um filme para crianças”. Contudo, nenhuma criança olha aquela cena e entende o que aquilo quer dizer. A suposta criança a que estamos protegendo a inocência, por ter inocência não absorve o que aquela cena quer dizer. Ou seja, é um discurso que não protege ninguém.

Um discurso que vise retirar aquela cena do filme terá apenas um efeito: chamar atenção às crianças do que aquela cena é e significa. Isso diz muito sobre essa relação entre o conservadorismo e as crianças: não há nenhuma criança de fato a ser protegida com discursos como “o que meu filho pensará ao ver isso?”. Esse filho hipotético é um Grande Outro político, um observador inerte e onisciente, inocente e não-inocente, cuja grande função é distorcer os limites e possibilidades da profusão de discursos. Esse grande outro é uma ilusão criada para impedir debates.
Mas, isso fica para outro texto.

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