RICK SANCHEZ VAI CAGAR NO DIVÃ DE LACAN, interpretando Rick and Morty a partir de Zizek e Lacan

Caio Almendra
8 min readNov 20, 2019

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O segundo episódio da quarta temporada de Rick and Morty é profundamente lacaniano. O plot é literalmente “Rick vai cagar” mas a psicanálise não está na questão da fase anal mas na busca por um mestre.
Uma rápida recapitulação: Rick resolve ir cagar e como um “cagante tímido”, ele vai para um planeta que ele criou para ser o lugar perfeito para cagar com privacidade. Ao chegar no planeta, descobre que outra pessoa utilizou sua privada. Então, ele parte numa missão para punir o invasor. Quando finalmente o encontra, Rick desiste de matá-lo porque esse alien, chamado Tony, perdeu recentemente sua esposa.
Mas Tony não desiste de usar o planeta-privada. Só que dessa vez Rick está à espera. Os dois se confrontam e Rick acabo por sentar com um robô gigante em cima de Tony. Tony é preso em uma simulação a partir de uma droga que mistura a parte do desejo de seu cérebro com a parte de realidade, efetivamente o colocando em um suposto paraíso onde todos os seus desejos são realizados. Essa simulação é um paraíso cheio de privadas, com sua falecida esposa e Deus, que especificamente diz que Tony pode cagar onde quiser.
Apesar de aparentemente perfeita, Tony resiste à simulação e acorda no porão de Rick, onde ele guarda todas as pessoas que ele não quer matar mas também não quer ter mais que encarar. Tony diz que eles acabarão sendo profundos amigos e que Rick precisa de alguém para o autorizar a viver e a cagar. Rick diz que Tony é um tolo, que eles nunca serão amigos e eles se despedem.
Rick resolve aplicar uma peça em Tony e leva chocolate com laxante para ele em seu trabalho. Assim, quando ele tentasse cagar, iria para o planeta-privada e quando sentasse na privada, hologramas iriam censurá-lo por cagar. O pesadelo do “cagante tímido”. Porém, quando Rick chega no trabalho de Tony com os chocolates com laxante, a secretária avisa que Tony morreu descendo do Everest.
Desolado, Rick vai cagar e pisa na própria armadilha.
Em outro plot, Jerry faz um app com um alien. Basicamente, é um super-Tinder que sempre acerta o amor da sua vida… por um dia. A cada novo momento, o app avisa de um novo amor da sua vida e você se separa e começa uma nova relação. O alien tem um plano malévolo de distrair a humanidade enquanto rouba a água do planeta. Jerry e Morty tentam tirar o app do ar e confrontam o líder dos aliens que afirma “your love’s value is defined by scarcity”(“o valor do seu amor é definido pela escassez”). Enquanto Jerry e Morty lutam contra os aliens, Summer usa o app à exaustão e Betty tenta evitar que ela fique construindo novas e novas relações.
Bem, acabado o “pequeno” resumo, vamos a principal questão do episódio, para mim: a busca por um mestre e a relação entre o mestre e o gozo. E vamos começar um novo resumo de todas as relações dos personagens com seus mestres:
Glootie é estagiário de Rick, logo Rick é seu mestre.
Summer segue indefinidamente o que o aplicativo manda, logo o aplicativo é seu mestre. Betty disputa com o aplicativo para se impor enquanto mãe e mestra.
Rick diz “hora de encontrar seu criador” quando descobre que alguém cagou em sua privada. O criador é uma referência a Deus e ao Pai, as duas imagens mais comuns do mestre.
Tem uma cena com uma mosca gângster que comanda um bar cheio de capangas sapos, sendo, portanto, o mestre um ser que biologicamente é a presa do servo. Também na busca por Tony, Rick pisa em uma trincheira com um funil na cabeça e um QR Code. Isso o torna o líder militar dos robôs.
Os monogatrôns tem um grande líder.
Morty bate nos monogatrôns para estabelecer poder perante eles, tornando-se os seus mestres. Um dos monogatrôns afirma que é um estagiário e que não é o Morty seu chefe.
Durante a alucinação induzida de Tony, na qual ele toma uma droga que mistura a parte do cérebro que controla seu desejo(“the whatever you want section of your brain”) e parte que ele interpreta a realidade(“the whatever you have section of your brain”, Tony encontra Deus.
Morty por duas vezes rejeita a liderança de seu próprio pai, Jerry, e nega-se a receber sua aprovação.
Um fazendeiro interpela Betty sobre seu excesso de protecionismo à Summer e ela responde “onde está a sua filha?”, ao que ele responde “Tem razão, ela entrou no Estado Islâmico”. O mestre-pai é substituído pelo mestre-Estado Islâmico.
Rick encontra vai ao enterro de Tony e encontra o pai desse.

A única pessoa sem um mestre em toda a narrativa é Rick. Diversas vezes, a série já discutiu isso. Ele já afirmou ser um deus, ser todo-poderoso e não jogar pelas regras de ninguém. Diversas vezes.
Esse episódio, portanto, discute duas situações, a existência ou inexistência de um mestre e suas nuances. E, aqui, eu queria fazer uma travessia intelectual entre Jacques Lacan, o duo Giles Deleuze e Félix Guattari e o retorno à Lacan pelo lacaniano Slavoj Zizek. Serei ridiculamente sucinto e simplifcante para poder voltar logo ao episódio.
Para Lacan, o mestre era uma criação intelectual do sujeito, inexistente(“não existe Grande Outro”) porém indispensável. Todo o plano simbólico, o super-ego, é inafastável. Nosso desejo seria fruto da nossa sensação de falta(aqui em diálogo com a frase “o valor do seu amor é definido pela escassez”). O mestre é justamente a figura que interdita a articulação entre o sujeito e o objeto causa do desejo.
Analisando um caso de Freud, Lacan afirma:
“(…) é um mestre. A tal ponto que podemos indagar se a invenção do mestre não partiu daí(…). Ela quer que o outro seja um mestre, que saiba muitas e muitas coisas, mas mesmo assim, que não saiba demais, para que não acredite que ela é o prêmio máximo de todo o seu saber. Quer um mestre sobre o qual ela reine.”
No pensamento lacaniano, portanto, buscamos um mestre ideal, que saiba tudo menos o que expressamente queremos esconder do mestre. O ciente dessa situação pode desenvolver histeria. Não à toa, Lacan famosamente falou que as manifestações de Maio de 68 era formada por “pessoas em busca de um mestre”.
Guattari rompe com Lacan e forma um duo com Deleuze para contestar a psicanálise francesa da época. Primeiramente, a dupla nega o desejo ser originado da falta, famosamente afirmando que “o desejo não carece de nada”. Para eles, a busca deveria ser por viver sem mestres, liberando o desejo de suas amarras.
A imagem do mestre sabedor-de-tudo, que permeia inúmeras instituições diferentes, nos tornaria programados a aceitar a dominação social pelo capitalismo. Apenas a demolição da figura do mestre em todas as vias permitiria uma vida além do controle, do medo, da paranoia.
Por sua vez, Zizek faz um retorno à Lacan em sua crítica da sociedade contemporânea. Para Zizek, de 68 para cá, a figura do mestre foi se dissolvendo, se diluindo, desaparecendo. Esse processo, contudo, não foi uma maravilha, não nos libertou do controle, medo e da paranoia, mas justo o contrário.
Zizek inverte a frase famosa dos Irmãos Karamazov de “se Deus não existe, tudo é permitido” para “se Deus não existe, nada é permitido”. É Deus, a figura do pai benevolente que perdoa nossas falhas, que nos permite gozar. Em oposição, o mundo sem mestres seria um de eterno receio. Nessa toada, ele nos traz dois casos distintos sobre “não ter mestres”.
O primeiro é mais direto, o pai pós-moderno que jamais ordena nada aos seus filhos. Para preservar o império de sua vontade, contudo, ele chantageia o filho com a própria responsabilidade. Não há mais uma ordem “vamos para a casa da sua avó” mas um discurso de responsabilização e gentil coerção “é uma escolha sua ir ou não para a casa da sua avó mas ela ama tanto você e vai ficar muito triste se você não for”. Para Zizek, essa situação do pai pós-moderno e falso-permissivo é muito mais opressora que a do pai tradicional: esse novo tipo de pai não apenas quer que você faça algo, ele quer que você queira e opte por fazer tal coisa. Ele não busca apenas modelar suas ações mas acima de tudo seus desejos.
O segundo caso é mais social e político. Zizek comenta a situação do patrão que mascara-se de amigo dos seus empregados. Apesar de manter-se na posição de capitalista, de pessoa que lucra com o trabalho alheio, ele arvora-se de uma suposta amizade para afastar qualquer forma de rebelião ou resistência de seus empregados. Portanto, seria a imagem clara e nítida de um patrão, de um mestre, que permitiria ao empregado rebelar-se contra a opressão. Isso entra em contexto especial quando olhamos o caso do Uber, que efetivamente nubla a imagem do patrão em uma falsa autonomia e liberdade.
Em resumíssimo, agora: Lacan considera o mestre indispensável, Deleuze considera o mestre afastável porque castra nossos desejos, Zizek considera que a inexistência do mestre que nos autorize a desejar pode ser opressora. E a vontade de cagar do Rick?
Num dos confrontos entre Rick e Tony, Tony afirma
“Você precisa de alguém para te dar permissão para viver.(…) Você sabe o que é “timidez para cagar”, Rick? É uma tentativa inútil de garantir controle”.
Tony percebeu que Rick, sendo uma pessoa sem mestres, não está autorizado a viver, a gozar. Ao final, Rick está desolado pela perda de um amigo(Tony) que ele nunca efetivamente permitiu-se ter. A narrativa assume um caráter zizekiano: sem um mestre, não há quem nos permita gozar. Porém, ela não resume-se a isso.
No outro plot, o do aplicativo de namoros, duas relações são desenvolvidas. Primeiro, Summer tem como novo mestre o aplicativo, que a ordena gozar um novo amor a cada poucas horas.
O resultado desse mestre que ordena o gozo de forma descontrolada é o mais-gozar, o jouissance: uma busca desesperada e autodestrutiva pelo gozo. Ao final, Summer está com olheiras, cansada. Os novos amores de sua vida são cada vez menos empolgantes e mais frívolos. Apesar disso, ela recusa a troca do mestre aplicativo pela mestre Betty, sua mãe que quer que ela contenha-se. O conhecimento do aplicativo, um conhecimento de dados sobre potenciais novos amores, é um mestre aceito; o conhecimento de Betty como mãe é um mestre rejeitado.
Mas, de certa forma, o aplicativo é o mestre silencioso, pós-moderno e invisível, como o Uber ou o pai permissivo.

Por fim, Jerry é um péssimo mestre para Morty e Morty sabe disso desde o princípio. Apesar de eventualmente Jerry salvar os dois e acabar com o aplicativo, a necessária posição de saber tudo e acreditar que o mestre sabe tudo nunca é estabelecida.

Ao fim, o mestre autoriza o gozo, como quer o lacaniano Zizek, mas o mal mestre é um desastre tanto pela possibilidade de ser um mau ordenante de nossos desejos, como pela possibilidade de falhar na sua função de estabelecer-se enquanto mestre.

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