PISAR ONDE A BOCA ANDA
como o centro tem escondido sua prática conciliadora com falsos radicalismos e o que devemos fazer para desmontar a hipocrisia
Essa semana estava lendo o noticiário norte-americano e percebi uma tendência contemporânea nos grupos político de centro. Vou tentar explicar isso com calma mas queria fazer um resumo: no mundo político de hoje, a distância entre discurso e ações do centro está aumentando impressionantemente. E mais, o discurso está mais radicalizado na promessa de enfrentamentos contra os adversários, enquanto as práticas estão cada vez mais de apoio aos adversários.
Em uma debate entre o filósofo esloveno Slavoj Zizek e o economista grego Yanis Varoufakis, ocorreu uma discussão sobre “democratização da Comunidade Europeia”. Para Varoufakis, as reuniões do eurogrupo, da “junta governante” da zona do euro, deveriam ser transmitidas pela internet e exibidas em praça pública. Para Zizek, se isso acontecesse, a única diferença é que a verdadeira reunião, a que decidiria de fato as coisas, aconteceria antes e a portas fechadas. E a transmissão pela internet seria um teatrinho onde se inventariam desculpas para as políticas já previamente acordadas.
O cinismo pragmático de Zizek nesse caso é uma boa descrição do que vivemos no mundo contemporâneo. Como um todo, a internet participou do processo de super-divulgação das informações. Quem é notícia, está permanentemente sob uma câmera, sempre sob risco de ser exposto pelo que falou ou fez. O resultado tem sido (i) uma redução da quantidade de informações que essas pessoas se dispõe a compartilhar no cotidiano, o excesso de platitudes no discurso comum, (ii) a transferência dos espaços de decisão e discussão para espaços cada vez mais privados, reuniões escondidas e etc, e (iii) a criação de uma constante batalha falsa entre duas posições centristas para se gerar notícia e turvar o debate. Todo esse processo, ao contrário de produzir uma polítização maior, um aumento do conteúdo político das discussões públicas, tem servido à despolitização.
Vamos ao exemplo norte-americano. Para quem acompanha a coisa nos EUA, existe um discurso reforçado entre os democratas de que Trump estaria “Sob o Domínio do Mal”*, um infiltrado de Putin na Casa Branca. Até aí, tudo parece bem descrito. Trump, de fato, tem relações esquisitas com bilionários russos, a inteligência russa está ativamente se imiscuindo com as eleições norte-americanas(da mesma forma que os EUA se imiscuem em eleições em quase todos os países do planeta).
E… na semana passada, o partido democrata, que passa a vida inteira falando que Trump é um infiltrado russo, aprovou um aumento obsceno dos gastos militares do governo dos EUA. Pense nisso. Se o presidente é um agente inimigo, qual o sentido de abrir o talão de cheque para esse agente ter mais dinheiro para comprar armas?
Isso só tem sentido por uma razão: a discussão sobre o aumento de verbas do governo norte-americano é feita em espaços privados, a discussão sobre a Rússia influenciando nas eleições dos EUA é pública. Aí, o discurso se distancia das práticas.
Explicada a dinâmica com um exemplo, vamos olhar o cenário brasileiro. Durante mais de uma década, o discurso petista que coloca a esquerda numa coleira é de enfrentamento aos tucanos. Diversas críticas a privatização… e práticas privatizantes. E por aí vai.
Depois, veio o impeachment e o discurso ganhou requintes a mais de radicalismo. Agora, era democracia vs ditadura, tudo ou nada, matar ou morrer pela liberdade. No discurso.
Nos bastidores, Alckmin opera para que o PSB não apoie Ciro Gomes, Lula opera para que o PSB não apoie Ciro Gomes. De quebra, o acordo previa o apoio a diversos candidatos que votaram a favor do impeachment. E Ciro Gomes nem é de esquerda, é apenas um ex-tucano anti-tucano amarguradaço.
A quem esse tipo de prática aproveita? Quem ganha com isso? Bem, como prática do centro, o sentido dela é simples. A internet criou espaços de nicho, cada vez menos centristas e cada vez mais radicalizados. A resposta centrista tem sido imitar a estética dos extremos e manter as práticas recuadas. Daí, os discursos constantemente mais falsamente radicais, discursos constantes de enfrentamentos de vida e de morte por ideais e etc, serem comuns… e as práticas nunca acompanharem tais discursos, sempre serem negociações de bastidores e conciliações pacíficas.
Mas qual a resposta que deve ser dada para essa hipocrisia? Bem, cada dia mais, acredito que a resposta deve ser “dobrar a aposta”. A questão é que Trump é um infiltrado da Rússia? Porque estamos esperando o Judiciário resolver? Então, a questão é a luta contra a ditadura Temer? Ok, quando vamos obstruir vias públicas, cruzar os braços e pegamos em armas? Peraí, por que, se vivemos uma ditadura de toga, estamos esperando o Judiciário inocentar Lula e prender Trump?
Se a questão é a distância entre a boca e os pés, talvez o que devemos cobrar não seja que as bocas sejam menos radicais mas que os pés acompanhem tais bocas. Ou isso, ou aceitar que o centro está vestindo a pele do extremo.
*A referência é ao filme “The Manchurian Candidate”, um filme da década de 60 com Frank Sinatra, onde um soldado da Guerra da Coreia foi torturado até se tornar um comunista, volta para casa como herói e se torna político. O filme teve um remake com Denzel Washington em 2004 e é a inspiração do início da série Homeland. Obviamente, a lógica do filme era a da época do macartismo, da perseguição de posições políticas divergentes e da criação de paranoia política.