PANTALEÃO E OS MILITANTES, MAIS PITACOS SOBRE UMA ESQUERDA MOVIDA POR DADOS

Caio Almendra
7 min readAug 1, 2019

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Seguindo aqui meu ofício Pantaleão, esse texto é sobre a dificuldade da esquerda construir métodos eficientes, baseados em dados e não falaciosos. Estão todos avisados, boa sorte a quem quiser ler.

O que faz uma boa decisão? Previamente, uma boa decisão é feita com o melhor método de aferição da verdade e da inteligência coletiva. Decisões pensadas coletivamente e debatidas livremente tendem a aproveitar ao máximo a inteligência coletiva. Enquanto processo continuado, contudo, isso não basta. Um processo decisório só será bom se, após tomada e executada uma decisão, houver um bom momento de avaliação dos resultados das decisões. É preciso ter métricas, medir resultados, saber o que é vitória e o que é derrota. Isso demanda dados e é por isso que chamamos o processo de decisões dirigidas por dados.

O mais curioso é que o arcabouço teórico da esquerda já foi a vanguarda desse tema. O materialismo histórico dialético, com seus cento e muitos anos, é uma das mais relevantes ferramentas data-driven já feita. A ideia de que agentes moldam e são moldados pelo mundo e que a inteligência a respeito dessas mudanças são frutos de um processo infindo de elaboração a partir da realidade tem todos os elementos que compõe a ideia de decisão dirigida por dados. Da mesma forma, as discussões a respeito da democracia dentro do movimento operário ou comunista é, desde Lênin, passando por seus sucessores e seus críticos dentro da esquerda, basilar da formação da esquerda. Enquanto a sociedade sequer conseguia constituir críticas ao “governo dos sábios”, o movimento comunista já discutia a ideia de que a inteligência coletiva é superior à inteligência do mais sábio dentro do coletivo.

Mas algo deu errado no meio do caminho. E esse texto é sobre isso.

Vamos falar do conflito entre inteligência prática e decisões dirigidas por dados. Eu não escreveria tantas palavras para simplesmente falar mal da inteligência prática. Ora, não tem nenhum sentido ignorar o conhecimento empírico. Primeiro, porque os olhos diretamente apontados para a coisa tem mais capacidade de visão do que qualquer planilha, número ou estatística. Depois, porque tenho a intuição de que toda a inteligência é, em si, prática. Por mais que algum dado seja capaz de melhor apontar uma medida, raríssimas vezes nos abrimos a dados que ferem nossa visão de mundo. Em outras palavras, toda decisão é determinada pela prática, pela experiência da pessoa ou pessoas que a tomam, mas podem ser dirigidas por dados, ou seja, na sintonia fina acertada ou re-acertada por informações.

Não há conflito, portanto, entre dirigir uma decisão mediante dados e aproveitar da inteligência prática. Diria mais: apenas com a criação de métricas em comum é possível termos uma verdadeira inteligência prática e coletiva. É a definição de métricas que coloca no mesmo plano duas experiências distintas e, assim, permite que as experiências distintas se fundam. Pensemos um caso prático que sempre é meu exemplo: duas pessoas distintas vão em dois lugares diferentes panfletar. Se uma não gostou da panfletagem e outra gostou, a coisa se dá por resolvida. Mas, se ambas gostarem, jamais saberemos qual o resultado real das duas experiências. Um processo de captura de dados, mesmo que tais dados incluam métricas “subjetivas”, é necessário para comparar ambas experiências. Se contarmos os panfletos entregues, os panfletos jogados no lixo, a receptividade do público, fizermos algumas entrevistas com pessoas ali e etc, teremos um parâmetro mínimo para comparar as duas experiências.

Isso, claro, não existe. A esquerda vive na inteligência sem dados, logo uma não-inteligência. O que determina, então, a ação da esquerda? O que acontece quando não nos preocupamos em construir métricas que façam um diálogo em comum ser possível?

Bem, sem um espaço em comum de discussão, um número infindo de falácias e preconceitos se acumulam a cada decisão coletiva. Primeiro, a posição social se impõe. A pessoa que é tida como superior, quer por força de preconceitos sociais, quer por capacidade oratória, “carisma”, posição na organização, ou seja, direção vs base, currículo, Lattes, o que for, é mais ouvida na decisão final que as demais. Morre a inteligência coletiva, viva o governo dos sábios(que, curiosamente, são também detentores de outros privilégios sociais).

Mas vamos supor que um grupo seja diligente na superação dessas questões, que seja verdadeiramente fraternal em sua construção. Ainda assim, haverão preconceitos a nublar a decisão. O que eu quero discutir hoje é o sunk cost fallacy. E seu gêmeo concorde fallacy.

Simplificando, sunk cost fallacy(SCF), ou “falácia do custo irrecuperável”, é a tendência de uma organização de continuar com um projeto onde ela já investiu muito dinheiro, tempo e/ou esforços, mesmo que a continuidade não seja o melhor a fazer. Concorde fallacy é a ideia de que só é possível recuperar dinheiro, recursos, tempo e/ou esforço investidos em um projeto se você continuar com esse projeto e, portanto, continuar investindo mais dinheiro, recursos, tempo e/ou esforços nele.

Normalmente, SCFs são aplicáveis para dinheiro, investimentos no mercado e coisas assim. Porém, todo o processo que torna ela verdadeira para dinheiro também é possível para o investimento emocional, pessoal e de trabalho.

Você decide organizar uma atividade. Você nutre carinho e esperança por ela. Você gasta seu tempo, que poderia ser gasto com algo que te desse prazer direto, trabalhando por ela. Você é naturalmente propenso a considerar essa atividade como relevante, não importa o quanto ela fracasse. Diria até mais: você naturalmente será reativo a qualquer balanço crítico e negativo.

Criticar o resultado de uma atividade construída dessa forma é, inclusive, mal-visto: a sunk cost fallacy é de tal forma presente que confunde-se avaliar criticamente o resultado da atividade com criticar o trabalho dos que a realizaram.

Pensemos em outro exemplo prático. Imaginemos que um coletivo decidiu fazer uma atividade, digamos um seminário ou debate. A ampla maioria de seus membros mobilizou-se, arrumou lugar, decorou o local, superou receios para convidar pessoas, panfletou na rua e tudo mais. O investimento de tempo, energia e emoção foi alto. A atividade, contudo, foi vazia.

Qual a boa métrica para se medir o sucesso de um debate? Eu sugeriria três, de pronta cabeça: (i)número de pessoas, (ii)número de pessoas novas, ou seja, que não foram em atividades similares anteriores e a (iii)receptividade das pessoas, ou seja, o quanto os participantes gostaram de estar lá. Se os três estiverem altos, saberemos que a atividade teve impacto, que seu impacto foi além do público já atingido por outras atividades(ou seja, que ela não “choveu no molhado”) e que ela tende a ser vitoriosa se repetida, dado que participantes que gostaram tendem a voltar e chamar mais pessoas.

Porém, a métrica efetivamente utilizada será o investimento emocional e de tempo dos organizadores. Eles poderão desanimar com o resultado mas um balanço crítico sobre o resultado dificilmente sairá. Uma das consequências práticas mais curiosas é o número de avaliações a respeito do sucesso de uma atividade política dizer respeito ao… clima. Parece inacreditável mas, ao menos no Rio de Janeiro onde milito, sempre haverá um momento do balanço político de uma atividade meia-boca que passará por uma discussão sobre como a chuva espantou o público ou como com aquele solzão ficou difícil competir com a praia.

Entendido a relevância do sunk cost fallacy em avaliação de atividades políticas, vale comentar outra obviedade da discussão sobre eficiência: a relação esforço x impacto. Uma boa medida da eficiência de uma medida de propósito, em qualquer setor, é comparar o esforço investido com o impacto atingido. Idealmente, as medidas de baixo esforço e alto impactos deveriam ser privilegiados, enquanto medidas de alto esforço e baixo impacto deveriam ser evitadas.

Essa não é uma matemática absoluta. É claro que existem atuações de alto esforço que se justificam por outras razões. Contudo, notemos uma tendência básica: atividades de baixo esforço são facilmente reprodutíveis, mesmo por voluntários. O baixo esforço sem necessidade técnica é mimetizado, viralizado, difundido e, enfim, enraizado na práxis política. A eficácia do baixo esforço ultrapassa, portanto, qualquer acusação de “preguiça”.

O ideal seria que uma atividade almejasse o maior número de pessoas com o mínimo de esforço organizativo. A forma habitual da esquerda se organizar e não metrificar seus resultados, em conluio com a sunk cost fallacy, geram justo o oposto: o impacto efetivo importa menos do que o esforço… e quanto mais esforço melhor bem avaliada a atividade é! Um grupo que pensou uma atividade, organizou por longas semanas sua execução, decorou o local no dia, tenderá a avaliar positivamente essa atividade, e fodam-se as métricas.

Alto esforço e baixo impacto é justamente o setor do gráfico que mais devemos evitar em busca de uma atuação mais eficiente e transformadora. Mas é justo o setor do gráfico que o sunk cost fallacy do nosso esforço afetivo nos puxa e nos faz não reavaliar.

A solução é simples: sempre determinar, junto com a decisão, como será metrificado o resultado dessa decisão. Sempre começar uma avaliação pela discussão da métrica pensada. Lembrar que existem infindas causas para o fracasso ou sucesso e que fazer uma atividade fracassada não diz respeito à sua qualidade enquanto militante ou profissional… mas que diz respeito a algo ligado à atividade, algo que só será descoberto e revisto em um debate sem falácias e preconceitos avaliativos.

Ou continuar a cada reunião de avaliação com a mesma conclusão de sempre: São Pedro é reaça. Eu queria que fosse piada. Mas ouvi isso mais vezes do que balanços sérios sobre a razão do fracasso de atividades.

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