O RELÓGIO ACULTURAL, como recuperar a imaginação política

Caio Almendra
5 min readApr 19, 2019

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Tenho algumas vezes falado da “redução dos horizontes imaginativos na política”, “fukuyamização da esquerda”, “perda de criatividade política(e até revolucionária)”. Em resumo, com a falência das experiências socialistas, sociais-democratas, “do estado do bem-estar social” e do socialismo utópico do século passado, a hegemonia neoliberal impôs uma redução das possibilidades imaginativas. Tudo que é não-neoliberal é visto como impraticável, impossível, loucura. E fica cada vez mais difícil sequer imaginar algo diferente.

Esse texto é minha tentativa de descrever não o problema mas a solução para ele. Como tal, é um texto difícil, arriscado, incompleto e repleto de outros tipos de deficiências. Mas é das cosias mais importantes de serem feitas e espero que seja continuado por pessoas mais capazes do que eu.

Há mais de décadas, eu encontrei um amigo olhando atentamente um relógio digital e escrevendo em um papel. Ele fazia graduação em arquitetura e estava fazendo um dever de casa. E nitidamente insatisfeito com a tarefa, que ele chegou a me dizer ser idiota.

Tratava-se de um exercício mental: escolher um objeto qualquer e imaginar que você é um alienígena, alguém completa alheio à cultura presente, observando aquele objeto. Meu amigo escolheu um relógio e fez uma análise combinatória de todos os possíveis signos que um relógio digital, com seus 4 algarismos formados por 7 traços retos, poderia transmitir.

Houvesse outra cultura, seria possível descrever as mesmas 24 horas com seus mesmos 1440 minutos, com um quarto dos traços. Seria possível escrever palavras inteiras, quem sabe poemas haikais, com outro olhar sobre ele.

No início do século XIX, um índio Cherokee de nome Sequóia olhou os símbolos esquisitos de livros que ele arranjou com homens brancos até inventar o próprio silabário(um alfabeto silábico) e, assim, a primeira escrita autônoma cherokee. Foi um árduo trabalho de anos mas o resultado foi ímpar: os cherokees, enfim, não dependeriam da língua dos colonizadores para escrever, registrar a própria história e educarem uns aos outros.

Sequóia era analfabeto, manco, alcoólatra e mal conheceu seu pai. Seu inglês era rudimentar, aprendido em seu comércio de ourives. Mas ele conseguiu sozinho o que linguistas demoram anos para conseguir: criou uma língua escrita do zero. O truque, tal qual o truque para fazer um simples relógio explicar muito mais coisas do que que horas são(ou fazê-los de forma mais eficiente) foi dar um passo atrás.

Na década de 90, William Gibson, famoso autor cyberpunk, disse que as mudanças sociais são mais movidas pela tecnologia do que por qualquer outro fenômeno, como cultura e política. Em uma paráfrase, a evolução tecnológica seria o motor da história.

A melhor resposta, para mim, é que “não existe tecnologia sem política, dado que tecnologia é técnica mais ideologia”. Aqui vamos dar um mergulho.

Tecnologia não é algo abstrato mas a utilização concreta das técnicas possíveis em dado momento. E essa utilização concreta é moldada pela ideologia da sociedade naquele momento. Dessa forma, a técnica(i)(algo abstrato) se junta ao fenômeno social concretizante(ii)(a ideologia) e cria algo concreto(iii)(a tecnologia)(chamarei isso de “fórmula”).

Pensemos o caso do carro. Carro é uma tecnologia. O motor à combustão, a metalurgia e etc, seriam técnicas(ou seriam o mais próximo que nossa capacidade imaginativa atual conseguiria pensar e nomear a técnica). Mas o carro, ou seja, o uso que damos a tal técnica é determinado pela ideologia, no caso, a ideologia capitalista do século XX.

Imaginemos que uma sociedade tem acesso à mesma técnica mas outra forma completamente diversa de produção, outra economia e outros signos. Haveria sentido construir a partir dessas técnicas um carro? Não seria o carro apenas a produtificação, a comoditização, dessas técnicas? Em uma sociedade não individualista, o motor à combustão não ocasionaria outras tecnologias, possivelmente menos individualizadas?

Para fazermos tal exercício imaginativo, tal qual o meu amigo aluno de arquitetura, demos um passo atrás.

Claro que o exemplo tecnologia só está presente aqui porque é um terreno de conversa confortável a mim, em meio a um assunto que assumo ser difícil. Mas a fórmula, ou seja, o (i)pensamento abstrato(ou a abstração do que poderia ser o pensamento) se tornando algo (iii)concreto pela travessia da (ii)ideologia, é aplicável a mais e mais formas de pensamento. Essa não é uma fórmula precisa, ela é apenas uma parábola. O pensamento abstrato não existe. A própria ideologia é um fator imaginário. Porém, o exercício de buscar tal pensamento nos serve a reabrir o imaginário perante aos processos de fechamento dos horizontes imaginativos políticos que descrevi no primeiro parágrafo.

Em outras palavras, não é possível cindir a técnica da tecnologia, nem mesmo a ideologia da tecnologia, de forma completa a ponto de descobrirmos a técnica pura. Mas é na tentativa de se buscá-la que se re-amplia a imaginação política.

Vou dar um exemplo corrente. Recentemente, me pediram para opinar sobre os malditos patinetes elétricos que infestam o Rio de Janeiro. Anos atrás, eu falei longamente sobre o aplicativo Uber. E, claro, em 2013 falávamos longamente sobre transporte público. Todos esses sistemas competem entre si. E cada um de nós compete para aproveitar melhor o próprio tempo, escolhendo de forma semi-informada, semi-racional, qual melhor meio de transporte usar a cada momento, qual caminho pegar e etc.

Poderíamos imaginar um sistema onde essas três coisas se tornam uma nova, em uma sociedade radicalmente diferente da atual? Imaginem uma sociedade em que não essas coisas não fossem de propriedade de três empresas em eterno conflito concorrencial e lucratividade minguante. Os patinetes poderiam ser alimentadores de uma malha de transporte público mais funcional. Um aplicativo com informações em rede poderia ser utilizado para optimizar as rotas, indicando o melhor caminho no momento, com base em uma ideia sistêmica de melhoria de transporte, valorizando o tempo de todos(e não fazendo todos viverem uma luta infernal pelo melhor aproveitamento do próprio tempo, também conhecido como “trânsito”). O tempo de todas as pessoas seria melhor aproveitado, o trânsito diminuiria, todos ficariam menos impacientes.

Se cindirmos ainda mais, se formos ainda além poderíamos pensar em alimentadores elétricos mais inclusivos a pessoas com dificuldades de mobilidade e menos inseguros que os patinetes, um aplicativo completamente automatizado que apenas te dissesse “suba nesse alimentador”, “desça desse alimentador e entre naquele bonde”, “dessa do bonde e suba nesse outro alimentador”, “você chegou ao seu destino”. Ou ainda, um bonde articulado que soltasse parte dos vagões pelo caminho, de acordo com o destino de cada usuário, conforme as informações coletadas pelo aplicativo.

A cada esforço de separar técnica e ideologia, a cada tentativa de purificação da técnica, um novo horizonte imaginativo surge, um pouco além do anterior.

Tecnologia é apenas uma das muitas formas de conhecimento onde esse tipo de exercício pode ser feito. Literatura, cinema, economia, arquitetura, design, direito. Qualquer divisão que façamos do conhecimento, a fórmula pode ser aplicada.

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