O PROBLEMA DA PREVIDÊNCIA NÃO É DEMOGRÁFICO
Intro
Ontem, escrevi um textinho sobre como a obrigatoriedade da Reforma da Previdência é uma ilusão, como sempre há mais de uma possibilidade de solução de um mesmo problema. Era um texto meramente provocativo.
Peguei a pena de novo para ser muito mais extenso. Notem, a afirmação de que um problema é solúvel de mais de uma forma e a indicação de uma de suas soluções serve à política. Mas uma verdadeira mudança apenas acontece quando dissecamos as variáveis e entendemos a dinâmica, o fluxo, desse problema. Esbarrarei, claro, no fato de ser significativamente leigo em economia e estar mais preocupado com a questão filosófica por trás do que com fórmulas econômicas. Queria, contudo, notar como esse é um problema, em abstrato, supra-capitalismo: a questão é quantas pessoas precisaram trabalhar em qualquer sociedade para sustentar aqueles que não podem mais trabalhar. Mas vamos começar.
O PENSAMENTO DEMOGRÁFICO E SUAS OMISSÕES
A história-padrão segue assim: com o avanço da medicina, a população vive por mais tempo e, portanto, se mantivermos a idade de aposentadoria fixa teremos dificuldade de sustentar os aposentados. Em geral, é acompanhada de uma conta assim: uma pessoa começa a trabalhar com 20 anos, se aposenta com 65 anos e vive até os 80 anos com a aposentadoria, logo, ela trabalha 45 anos, contribui vinte porcento do salário para a previdência, o que dá 9 anos de salários acumulados, e recebe por vinte anos. Logo, faltará dinheiro. Os números podem variar terrivelmente mas essa é a essência do pensamento demográfico, um que acho importante superarmos.
Em seu fluxo, ele isola todas as demais variáveis econômicas e sociais e lida com basicamente duas, os anos de contribuição de previdência e a expectativa de vida. O aumento da expectativa de vida deve ser acompanhado de um aumento dos anos de contribuição, é uma fórmula linear e retilínea. Sua simplicidade explica porque tantos a acham insuperável.
Vamos complexificar um pouco. Durante os anos que uma pessoa contribui para o INSS, ela soma uma grande quantidade de recursos e tais recursos podem ser investidos na economia e receber juros. Esse é um enfoque comum das soluções mais liberais para o problema: é apenas uma questão de investimento, rendimento do investimento e retirada do investimento, dizem essas fórmulas. Essa é a lógica do modelo de capitalização, que foi defendida em 2018 por nada menos que cinco candidatos(Jair Bolsonaro (PSL), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (Rede), Geraldo Alckmin (PSDB) e Alvaro Dias (Pode)), e vamos chamar essa fórmula de demográfico-individualizante, dado que ela obedece a mesma lógica demográfica acima explicada mas individualiza o problema.
Voltamos à nossa fórmula: uma pessoa começa a trabalhar com 20 anos, se aposenta com 65 anos e vive até os 80 anos com a aposentadoria, logo, ela trabalha 45 anos, contribui vinte porcento do salário para a previdência, esses 20% rendem 3% ao ano, o que dá 12 anos de salários acumulados, e recebe por 20 anos. A única resposta diferente é que se faltar, o trabalhador individual ficará sem aposentadoria nos anos finais.
Não vou adensar minha discussão sobre o modelo de capitalização, apenas queria citar algumas coisas. Uma das maiores desvantagens do regime de capitalização é que os contribuintes previdenciários passam a depender das taxas de juros, dos riscos dos negócios, da saúde de toda a economia, para manter as próprias aposentadorias. Países com juros negativos, como a Alemanha ou o Japão, veem um empobrecimento da população ligada aos baixos juros. Notem, a economia vai bem, os grandes investidores alemães, aqueles capazes de pegar emprestado na Alemanha para emprestar em outros países, lucram como nunca mas os aposentados e trabalhadores sofrem. Ademais, o risco social dos investimentos passa a ser carregado pelo indivíduo.
O principal problema para nossas investigações, contudo, é que o modelo de capitalização mantém-se subordinado ao pensamento demográfico da previdência.
Quais os elementos que faltam no pensamento demográfico? Vamos dar alguns passos atrás antes de avançar nessa questão.
A Previdência é um patrimônio, um conjunto de ativos contrapostos a passivos e rendas contrapostas a gastos. Arrecadação versus distribuição de aposentadorias e pensões. Se há um problema de déficit, ele pode ser resolvido com a redução dos gastos(como a Reforma da Previdência) ou com uma ampliação da arrecadação. Mas… toda vez que alguém fala em aumento da arrecadação, alguém acha que estamos falando em aumentar a contribuição previdenciária. Novamente, é uma lógica dentro da fórmula do pensamento demográfico.
Mas, existe um negócio chamado base de contribuintes, ou seja, quantas pessoas estão empregadas e recebendo salário na sociedade hoje. Se um número maior de pessoas está contribuindo, a arrecadação sobe. A principal abstração do pensamento demográfico é considerar o universo previdenciário o conjunto de toda a sociedade, o que é sempre falso. Todo o pensamento demográfico pensa que base contribuinte é o mesmo que o conjunto da sociedade.
Só para se ter uma ideia, hoje no Brasil existem 37 milhões de pessoas com carteira assinada e contribuinte do INSS. A população brasileira é de 200 milhões e pouco menos de 80% dessa população tem idade para trabalhar. São 160 milhões de pessoas, menos de um quarto com emprego. Ademais, o mundo vai além do Brasil e é sempre possível importar mão-de-obra, como refugiados políticos, sociais, religiosos, econômicos e climáticos, ou migrantes não-refugiados.
Diversas formas podem ser tomadas para aumentar a base de arrecadação, a começar pelo aumento da formalização do trabalho. Mais carteiras assinadas, mais contribuintes, mais arrecadação. A resposta habitual do pensamento demográfico é que isso é transitório e tem apenas capacidade de resolver temporariamente os problemas. A resposta é justo o oposto: o déficit da previdência é um problema fabricado com o objetivo de aprovar uma Reforma da Previdência.
O desenvolvimento científico permitiu um aumento(bem pequeno, na verdade) da expectativa de vida… mas permitiu um aumento gigantesco na produtividade do trabalho. Se um mineiro do século XIV conseguia carregar pouco mais de quarenta quilos de minério em uma carro de mão, a maior escavadeira em funcionamento carrega 100 toneladas em sua concha. Esse é o verdadeiro grande impacto da tecnologia no mundo do trabalho e da previdência.
Como resultado desse aumento da produtividade, a sociedade humana nunca produziu tanta riqueza(e impactou tanto o planeta). Mas, também, com o aumento da produtividade, foi possível empregar cada vez menos pessoas. Na esquecida promessa do que seria o desenvolvimento tecnológico, a jornada de trabalho diminuiria cada vez mais. Como a jornada de trabalho está fixa em 40–44 horas por semana desde meados do século passado, a régua está fixa. A lucratividade do trabalho gerou uma riqueza que foi exclusivamente apropriada pelos empregadores(e, principalmente, pelos empregadores mais ricos). Manter a divisão da lucratividade na mesma proporção do início do século passado exigiria uma redução proporcional da jornada de trabalho mas isso nunca mais foi feito.
Essa é a grande perversão do pensamento demográfico. Ele é uma cortina de fumaça para esconder que o aumento da produtividade do trabalho não está sendo justamente distribuído entre toda a sociedade. Uma distribuição justa do incremento de lucratividade que o aumento da produtividade do trabalho acarretou seria suficiente para suprir o chamado déficit da previdência.
Ou melhor, do ponto de vista mais seco, direto e correto, chamamos de déficit da previdência o impacto negativo sobre as contas previdenciárias da não-distribuição dessa lucratividade adicional. A própria expressão déficit da previdência está incorreta: o termo correto é impacto na previdência da manutenção da jornada de trabalho.
A Reforma da Previdência só é necessária para escamotear a origem do tal déficit da previdência.
P.S.: Esse foi o texto que consegui fazer após essa percepção sobre a natureza real do déficit previdenciário. Um embasamento maior em economia seria essencial para torná-lo mais preciso. Um embasamento maior em filosofia seria capaz de torná-lo mais potente. Faltou ambos e faltou tempo(inclusive tempo para deixá-lo mais curto e sintético). Não é o texto que precisamos mas o que consegui fazer dentro de uma pesquisa tão curta e do meu tempo disponível atual. Se alguém puder expandi-lo, sinta-se a vontade.