O GERENTE DO IMPOSSÍVEL

Caio Almendra
6 min readFeb 16, 2021

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A câmera liga e após alguns planos de estabelecimento estamos numa reunião burocrática. Os assessores do prefeito Musa Hadid, da cidade de Ramala, na prática a capital da Palestina, discutem o branding da cidade.

Esse slogan está confuso, um fala. Branding não é apenas um slogan, outro continua. É como Minesota, um fala, a cidade de mil lagos. Enfim, o Hadid interrompe:

-Eu vou dizer o que significa o branding de uma cidade. Branding da cidade significa que sempre que você olhar para algo em Ramala, você imediatamente identifica aquela coisa com Ramala.

É esse o início do documentário Mayor(2020), do diretor David Ossit, que acompanha um ano na vida de Hadid.

A cena chega a ser engraçada, presa entre o patético e o trágico. Não, não será nenhum slogan, nenhum branding, nenhuma intervenção estética que mudará o que nos faz identificar a cidade de Ramala. O branding de Ramala está feito pelas circunstâncias e é impossível de fugir dele: sempre que ouvimos o nome da cidade, imediatamente identificamos a tragédia da ocupação israelense no território Palestino. Essa tragédia é mais ramalense do que o pão-de-queijo é mineiro, ou o Cristo Redentor é carioca. Essa tragédia é o branding da cidade, o seu Cristo Redentor.

O documentário começa e Hadid e a população ramalense estão preocupados em ter uma boa festa de Natal. Não que a população cristã seja maioria em Ramala. Hadid até é cristão e Jesus Cristo é considerado um profeta pelo islamismo. Mas a obsessão com o Natal é mais bairrista: Jesus foi o profeta que nasceu ali perto, um estranho herói nacional palestino, esse país manjedoura.

Musa Hadid é um prefeito moderno, engenheiro, modernizante, com a cabeça voltado ao Ocidente apesar dos pés presos ao chão do Sul Global. A cidade de Ramala foi fundada por cinco famílias cristãs que se revezam na prefeitura desde sempre. Mas as mudanças tem sido rápidas.

Até 1997, a população de Ramala vinha em queda e chegou a 17 mil pessoas. Hoje, tem o dobro. A economia cresce robustamente 8% ao ano por um bom tempo. É aí que está a pressão pela modernização e rebranding que Hadid e seus assessores expressam. Não à toa o branding é diretamente inspirado em no IAmsterdam da capital holandesa.

Mas não, esse não é o filme institucional de uma prefeitura tucana ou um TED Talk sobre “cidades inteligentes”. Enquanto Hadid se ocupa com a inauguração de um shopping, de uma fonte de água automática com show de luzes e demais necessidades da modernização capitalista da pequena cidade, a Jerusalém ocupada está há apenas 10 km. E nessa estreita faixa de 10km, colonos e mais colonos israelense tem se mudado, ocupando ilegalmente o território palestino e comprimindo Ramala.

Hadid tampouco é indiferente à ocupação. É mais complexo que isso: ele é contrário a ocupação mas entende que sua tarefa na luta por dignidade do povo palestino passa por uma posição mais modesta, mais singela, de gestor de Ramala. Garantir água, coleta de lixo, um bom natal e o bom humor dos cidadãos ramalenses seria sua parte da responsabilidade e ele quer se manter nela.

Mas um incêndio começa em um lixão. E não há água pra apagá-lo. A disputa pelas fontes de água é essencial. O estado israelense controla, à força, as fontes de água.

E Hadid precisa fazer um cemitério novo para uma cidade que dobrou de tamanho. Mas não é possível construir na distância sanitariamente recomendável, porque nessa faixa fica a ocupação.

Musa Hadid permanece firme, gerenciando o impossível. O rosto cansado de quem vê sua tarefa restrita e humilde se tornando completamente inviável pelas limitações que a ocupação causa.

Até que chega uma delegação alemã. E esse é, para mim, o grande clímax do filme.

Na reunião, Hadid lista as intensas dificuldades por qual passa. E a reação alemã é a mais clichê das respostas prontas: “Você já experimentou sentar com os israelenses? Olhar eles nos olhos? Será que não ajuda?”.

O estalo na cabeça do gestor do impossível é quase audível. Dá para ouvir o eco dá última gota d’água transbordando sua paciência.

“É sobre dignidade”, ele fala pronunciando a palavra com uma secura e dignidade ímpar em cada sílaba. “Quando chega à identidade da gente, não é aceitável, ok? Quando nós nos sentimos tratados como escravos e eles como mestres, nós estamos prontos para fazer qualquer coisa. Mas quando um soldado de 16 anos me apontando uma arma me obriga a tirar toda a minha roupa, é sobre dignidade”.

“E quando chega à dignidade, é inegociável, certo?”

O documentário não tem entrevistas. Ele não tem narração ou legendas. A narrativa é muito seca. O diretor David Ossit conseguiu manter a câmera praticamente como um “olhar de Deus”*. Você chega a se esquecer que é um documentário(um amigo que assistiu comigo chegou a questionar: “é ficcional?”) de tão bem feitos que são os planos.

Contudo, um dia, em meio ao caos que a cidade fica após a mudança da embaixada dos EUA(e consequentemente de outros países, como o Brasil) para Jerusalém, o exército israelense invade ostensivamente a cidade. Procuravam algumas das pessoas que protestaram contra a mudança da embaixada. Hadid e a visão de Deus do filme são testemunhas de um jovem ramalense desarmado sendo alvejado por um soldado israelense.

A cidade vira um caos, com pessoas fugindo, carros na contramão e relatos confusos sobre violência do exército contra civis. Já de volta ao prédio da prefeitura, Musa Hadid está mais exausto do que nunca. Ele observa a comoção da cidade pela ampla janela. E “quebra a quarta parede”**:

-David, você acha que as pessoas nos EUA sabem ou ouvem o que está acontecendo aqui?”

E o diretor responde: -“Eu não tenho certeza. Acho que não”.

E o prefeito monologa: “Apesar de tudo que a gente faz, eu sinto inveja quando viajo pra outras cidades. Tem tanta coisa que eles podem fazer e a gente não. Não porque não queremos, mas porque está além do nosso controle”.

Mais claro impossível: contra a bárbarie, não há gestão.

O filme continua. Mas essa crítica não. O final é ambíguo: a tal fonte na praça em frente ao shopping é destruída pela invasão do exército israelense. Mas Hadid consegue que seja consertada a tempo do Natal, para homenagear Jesus Cristo, esse compatriota do país manjedoura.

E o filme retorna ao seu tom cômico, trágico e patético, ao se encerrar com um show de luzes dessa fonte, ao som da breguérrima “My Heart Will Go On”(Meu coração seguirá).

A música é brega demais e qualquer pessoa no Ocidente fecha-se para sua letra. Mas uma mente mais idiota pode se perguntar: Como? Como se segue?

*(essa expressão do cinema reflete a posição de câmera mais comum nas obras de ficção: o câmera não é reflexo da visão de um personagem, apenas de um observador neutro, indefinido que tudo vê).

**No cinema, a quarta parede é a barreira imaginária entre ação cinematográfica e o público. “Quebrar a quarta parede” é a situação que o filme não encena mais para o público e sim o reconhece diretamente. É comum quando personagens, de Woody Allen à Curtindo a Vida Adoidado, de Deadpool à House of Cards, conversam diretamente com o público.

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