O amor à literalidade: a pós-modernidade no armário.

Caio Almendra
6 min readJan 17, 2019

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Há não tanto tempo, me meti num arranca rabo de FB por fazer um questionamento simples sobre um meme. Era uma frase engraçadinha criticando algum eufemismo-padrão que falamos em términos de relacionamentos (talvez o infame “não é contigo”). Comentei que não fazia sentido a internet ter aberto guerra contra os eufemismos. E vieram as tretas e até xingamentos. Quem ousa defender as figuras-de-linguagem???

Estava redondamente enganado no meu personagem. Esse texto é sobre como a pós-modernidade anti-intelectual(novo personagem) abriu guerra em defesa do literalismo e do fim de toda e qualquer nuance. Pronto, não podem mais reclamar que eu não avisei. Boa sorte.

Em outro momento do passado, uma amiga minha compartilhou a música “Menina Amanhã de Manhã”, do Tom Zé. Só que não era a versão do Tom Zé, mas uma versão fofa cantada só por mulheres sorrindo e alegres. E o chato que vos escreve resolveu comentar que tinha odiado a versão, dada que retirou toda a ironia e sarcasmo da música. A música, afinal, era sobre a ditadura. A felicidade que desaba sobre os homens não é uma felicidade real, vinda de dentro(afinal, ela desaba…) mas a felicidade forçada e obrigatória que nasce dos discursos ufanistas, repressivos, autoritários. Seja feliz ou vai se arrepender! Ame-o ou deixe-o!

“Você estragou a música, seu chato”. Ora, e eu achando que era a versão fofa que havia estragado as sutilezas da música. Mas muito obrigado pelo elogio, Juliana Meato. Rs

Nesse momento, comecei a perceber sobre a profunda tristeza desse movimento de apagar as nuances e falar apenas o que se quer que aconteça. Cheguei a comentar como seria tristeza que o roteiro de uma conversa como a de Tara Fitzgerald e Ewan McGregor(você não quer subir para tomar um café? Quero. Só tem um problema, eu não tomo café. Não tem problema algum, eu não tenho café) se fosse simplesmente reduzido a “quer subir para trepar?”. Ou, para arruinar a infância, se Dona Florinda dissesse algo parecido ao Prof. Girafales.

Mas seria esse só um incômodo pessoal de um chato? Bem, vou tentar fazer o caso que não.

Ao fim de “Como Ler Lacan”, Zizek comenta o caso da carta de Mohammad Boueyri, um fundamentalista islâmico que comete um assassinato e deixa uma carta no corpo da vítima. Zizek destrincha essa carta e comenta como Boueyri demonstra seu fundamentalismo ao manter um regime discursivo que aceita apenas a verdade ou a mentira. Existiriam, segundo ele, os fundamentalistas ateus e os crentes, um estaria certo e o outro errado.

O que falta, para Zizek, é a verdade que se incrusta na mentira e a mentira que se incrusta na verdade. Vejam acima: quando Tom Zé chama a ditadura de “felicidade”, há uma verdade dentro de uma mentira(a ditadura não foi feliz para Tom Zé e seu público, aí a mentira, mas obrigou a todos fingir-se feliz). Quando eu ou minha amiga chamamos a mim de chato, há uma verdade(eu, de fato, invadi um Facebook alheio para “destruir” uma versão de uma música a qual ela estava tecendo elogios) e uma mentira(é esse ser chato que a faz gostar de conviver comigo(quer dizer, não sei ao certo mas posso dizer por mim que ser chato me é delicioso)).

São nessas mentiras-verdades, verdades-mentiras e em todo o espaço aberto pela linguagem que se estende a disputa de sentidos das coisas. Se há algo aproveitável na surrada palavra “ideologia”, esse algo está justamente nesse amplo campo da não-literalidade. A ideologia não é algo que nos faz defender interesses estranhos a nós em sua literalidade, mas justamente em uma roupagem que desfaça tal literalidade. E, portanto, esse é um dos mais elementares espaços de luta política.

A narrativa vulgar na esquerda sobre o que é a pós-modernidade segue mais ou menos assim:

“No passado, havia o preto e o branco, todos sabiam o que era preto e o que era branco. Aí, surgiram os pós-modernos, que a pretexto de acabar com o comunismo e defender valores burgueses, inventa que o preto é branco e o branco é preto para que ninguém saiba o que é branco e o que é preto e seja impossível de lutar”.

Só tem aqueles probleminhas… nunca houve uma época em que fosse preto no branco. São as narrativas atuais sobre o passado que, permeadas da nossa literalidade, afirmam um passado bicolor. E, principalmente, não é a bi-coloridade que obstrui as lutas.

https://www.youtube.com/watch?v=eSB9b4oBnBA

Em um brilhante vídeo longo chamado “Cinismo e falência da crítica”(a respeito de um livro que está na minha fila de leitura ainda), Vladimir Safatle percorre as diversas figuras de linguagem, diferenciando-as, Por fim, discorre extensamente sobre o cinismo, a origem da falência da crítica, para ele. Cinismo, aqui, não é a corrente filosófica de Diógenes, que pregava a felicidade a partir da vida simples e avessa às convenções sociais. Aqui, cínico é o do uso comum, aquele que denota a fala exposta como verdade mas repleta de falsidade. Mas com uma torçãozinha.

Cínica é a fala exposta como verdadeira mas com um fingimento. Usualmente, entendemos esse fingimento como direcionado ao outro, ao “público”, ao externo. Mas, e é isso que me interessa na intersecção entre psicanálise e política, o principal destinatário de todas as frases não é externo, é o Grande Outro, um ente onipresente, um ser a quem falamos, um agente que tudo ouve… e que não passa da nossa própria percepção simbólica de mundo.

Em outras palavras, temos receios de falar o que pensamos até no escuro porque onde estivermos há um Grande Outro nos ouvindo. E, notem, é para esse que verdadeiramente somos cínicos.

O que sabemos sobre a pós-modernidade de fato? Bem, ela seria uma prática que valoriza a performance sobre a materialidade. O problema é que confunde-se literalidade com materialidade e qualquer figura de linguagem ou sutileza por performance. Nada seria mais falso: é da sutileza da linguagem que se depreende o real e a literalidade pode(e muitas e muitas vezes em nossa sociedade é!) ser apenas mais uma forma de performance.

E é aí que meu ponto chega: a cruzada pela literalidade em tudo é meramente uma performance. O real a respeito do relacionamento terminado com um eufêmico “não é você, sou eu” é que há um problema relacional, envolvendo a dinâmica que se construiu entre as duas partes. Esse eufemismo-padrão(“não é você, sou eu”) costuma enunciar, mesmo que não sendo dito, que, sim, é uma questão relacional que prefere não ser descrita(muito provavelmente por ser bem sabida por ambas as partes). A literalidade da descrição pormenorizada do que deu errado será eminentemente cínica: se A faz a lista, é provável que esconda de B alguma coisa mas é certeza que esconderá de si mesmo muito mais!

Em outras palavras, esse fetiche por dizer “como as coisas são sem firulas e nada mais” é uma performance. A verdade não está ligada a essa atividade de fingir-se frio relator da realidade como é posta. A verdade é justamente aquilo que aparecem nas entrelinhas… logo é preciso que hajam entrelinhas!

Quando Tom Zé afirma que “menina, ela(felicidade) mete medo/menina, ela fecha a porta/menina, não tem saída”, ou, ainda, quando ele, em Todos Os Olhos, começa a música dizendo “de vez em quando todos os olhos se voltam para mim esperando e querendo que eu saiba.. mas eu não sei de nada” e a música mimetiza com certa ironia uma sala de tortura, a sutileza te dá muito mais claustrofobia do que uma mera frase cantada “na ditadura se torturava gente”.

(O próprio abuso(super-uso) de imagens graficamente chocantes a respeito da tortura tem impacto imediato mas efeito controverso no longo prazo. Ele tende a dessensibilizar as pessoas. Uma entrelinha pode ser muito mais potente sem o mesmo resultado.)

E o que há por trás da performance da literalidade, do “dizer como realmente é”? Bem, a primeira especulação(já que sempre me recusei a ser uma pessoa assim) é que esse exercício reafirma para si que aquela é a verdade. Notem, os fundamentalistas não são aqueles que acreditam com a mais profunda crença. O bom fundamentalista é aquele que precisa de uma ação, performance ou histeria para dizer que acredita. Se alguém comete um ato falho e afirma que Deus não existe, cada segundo a mais que ele gasta explicando tal ato falho é uma tentativa vã de, por ações, provar que há fé em seu coração. Se por conta desse ato falho, ele resolve imolar-se como o monge de Código Da Vinci, teremos certeza: ele esconde uma forte não-fé por ações.

A necessidade de afirmar a cada momento o que se é, a necessidade de afirmar a cada momento da certeza a respeito do real, o impulso de dizer que o que digo é a verdade como ela é, com frieza, apenas soa o justo oposto: há falta de convicção em tais “verdades”. Mas, principalmente, há uma salto lógico nessas verdades. O real só pode ser depreendido da ficção, como ensina Lacan. O sonho da literalidade universal é uma performance que nos afasta do real. Essa é a própria definição vulgar de “pós-modernidade”.

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