Nostalgia Pelo Presente, conformismo e reacionarismo
Um dos escritos mais interessantes do crítico literário, cinematográfico e marxista Fredric Jameson se chama “Nostalgia pelo presente”. É um capítulo do livro “Pós-modernismo, ou, a Lógica Cultural do Capitalismo Tardio”.
Nele, Jameson se presta a analisar o filme Corpos Ardentes(1981) e nota como ele mistura elementos de filme de época em um filme sobre o presente. O enredo, também, trata de uma grande paixão que necessita de um assassinato para continuar presente. Ao fim e ao cabo, Jameson descobre uma das mais intricadas fórmulas para o conformismo, a criação de um forte desejo nostálgico pela manutenção das coisas como estão.
(Como estou próximo de juntar 5mil amigos e preciso abrir espaço para não dizer “dever cumprido, hora de fechar o Facebook”(tal como uma pessoa que começa a ler um livro que gosta mais devagar com medo daquela tristeza que se assombra quando terminamos um livro), vou usar outro exemplo, um que me garantirá algumas desamigações.)
Vamos sair dos filmes obscuros do neo-noir da década de 80(afinal, todos nós só vimos os filmes do Scorcese mesmo…) e passar para algo mais contemporâneo(apesar de ser uma obra também da década de 80…): Os Contos de Aia(SPOILERS).
Nos livros de Margaret Atwood, vemos uma sociedade futura após uma tomada de poder dos ultra-conservadores. As mulheres são duramente reprimidas, das formas mais inovadoras e criativas, por essa nova sociedade. Ao final, o livro corta para um momento futuro, onde uma nova sociedade se formou. E essa nova sociedade continua machista de forma similar a nossa, com um sutil desprezo pela opinião das mulheres.
Só temos um problema: qual a moral dessa história inteira? “É preciso se sentir feliz por vivermos em uma sociedade que não é tão conservadora”. Essa mensagem é essencialmente conformista. Não há nenhuma crítica real à falta de liberdade sexual e igualdade de gênero da nossa atual sociedade, apenas um conto assustador sobre o que podemos perder.
Aqui, queria fazer um parêntese para falar sobre a necessidade da criatividade. Em um corte simples, uma crítica pode ter dois vieses. O primeiro viés é reativo. Reativas são aquelas críticas que indicam problemas em uma proposta específica. Elas olham uma proposta e aponta seus pontos negativos. Essas são importantes.
E existem críticas disruptivas, transformadoras, revolucionárias, criativas, ou algum nome similar. Essas tem viés propositivo. E essas são essenciais. Acontece que, para ela existir, precisamos da capacidade de pensar uma sociedade melhor, de desejar um mundo além do atual(e até, além do que consideramos, hoje, possível). Em resumo, Contos de Aia é conformista(eu até diria “um ápice de conformismo”) porque todas as suas críticas são reativas e não há nenhum investimento de criatividade em algo melhor para a sociedade, apenas em como as coisas podem piorar.
A principal razão da falência da crítica de esquerda e, portanto, da própria crise na esquerda contemporânea é o fechamento das possibilidades criativas das nossas imaginações. Somos incapazes de pensar um mundo melhor do que aquele em que vivemos.
Essa é a estrutura que Fredric Jameson sempre criticou: uma redução radical da capacidade imaginativa que nos coloca ansiando, desejando, apenas pela manutenção do presente. E aqui entra a tal “nostalgia pelo presente”, um recurso literário de escrever sem tal capacidade imaginativa, de tornar imaginário o mundo atual.
Mas, claro, esse texto não objetiva apenas pintar um alvo na minha testa por criticar a série mais querida nos ambientes desconstruídos. Esse texto é, como não poderia deixar de ser, sobre “os tempos de Bolsonaro”.
Sendo franco de forma que permitirão aos críticos me tirar do contexto só para me sacanear: após os primeiros cem dias de Bolsonaro, poucas coisas de fato mudaram em nossa sociedade. Muito foi ameaçado, a Reforma da Previdência é um perigo real e pode ser uma catástrofe social para uma parcela significativa da população(a maioria, contudo, não são os mais precarizados da sociedade), o pacote anti-crime de Moro tornará nossa sociedade ainda mais violenta, indígenas e o ambiente tende a sofrer ainda mais, entre outras. Mas esses cem dias tiveram poucas medidas efetivamente destruidoras e efetivamente mais radicais do que nossa sociedade já é violenta.
E, notem, os grupos afetados por essas medidas já eram os grupos sociais atacados pela república de 89–2013. Já vivíamos um genocídio indígena. O Brasil já era um dos países que mais prendia pessoas do mundo e em que a polícia mais mata no mundo. Os trabalhadores formais já eram atacados e precarizados.
Parte significativa da crítica que fazemos, hoje, é como o passaporte diplomático do Edir Macedo: vendemos como se fosse uma novidade, sendo o passado recente. É um caso especial de nostalgia pelo presente, onde nossa imaginação está aprisionada em desejar o presente.
Esse é o sentido da palavra “resistência”. E é por isso que parafraseei Alain Badiou para dizer que “resistência é o nome do inimigo”. É o desejo de resistir que atira em nossos joelhos para que não consigamos fazer, de fato, algo transformador e que ameace ao Bolsonaro.
Mas, é essencial resistir a Bolsonaro, não? Sem dúvidas. Porém, a forma mais eficiente de resistir jamais será “fazer resistência”. A verdadeira contraposição a Bolsonaro e seus projetos não é uma resposta que diga “vamos manter as coisas como estão”, não é a construção de uma nostalgia pela república de 89–2013.
Uma resistência efetiva exige um ressurgimento de imaginação política que nos permita não apenas dizer “não” mas dizer “ao invés disso, aquilo”. Nenhum movimento político ganha corpo, volume, movimento, a partir de uma negação. Ninguém que venha dos grupos atingidos pelo pacote anti-crime de Moro, pela Reforma da Previdência ou pelo desmonte da FUNAI pela bancada ruralista, irá se mobilizar por uma nostalgia pela república de 89–2013, que tanto os surrava. Ninguém convence ninguém a sair da fritura em óleo fervente dizendo “que tal voltar para aquela panela de água fervente?”.
O discurso de retorno à Era PT, que massacrava índios, aprisionava pretos e precarizava trabalhadores, é exatamente isso: uma defesa ineficaz de uma resistência pouco imaginativa que jamais agradará e mobilizará os mais afetados pelas medidas de Bolsonaro, dado que já eram os mais prejudicados durante o governo PT.
É preciso criar o desejo por um outro futuro. A resistência é o nome do inimigo.