NO FINAL DA PONDERAÇÃO, TEM UM INVERNO NUCLEAR

Caio Almendra
4 min readMar 8, 2022

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A maioria da esquerda, ao contrário do que pareça nos rincões insanos da internet, está com a posição correta: crítica à invasão de Putin, sem fingir que ela é um raio em céu azul, ou seja, colocando ela como consequência direta da expansão da OTAN.

Essa posição, inclusive, se assenta no fato de que toda a inteligentzia norte-americana, a começar por discursos de Joseph Robinette Biden no final da década de 90, concluía exatamente isso: dá para mexer com a Iugoslávia mas se a OTAN chegar no Báltico iria levar a Rússia à guerra(erram por pouco: chegar no Báltico foi tolerado, chegar até o mar de Azov, não).

O problema, e aqui eu assumidamente saio da discussão sobre o que é “verdadeiro” e entro na discussão sobre a efetividade do discurso, é que essa posição “sensata” não nos trará nenhum benefício. E sem discutir a efetividade do discurso, iremos todos morrer com o discurso “correto” na língua.

O problema é que a polarização assimétrica está fritando nossa sensatez em óleo fervente. O tabuleiro político do mundo foi demais pra direita. O discurso do Biden de 1997 foi substituído pelo “Putin é Hitler” dos liberais dos EUA presos no Russiagate, a teoria da conspiração estapafúrdia de que Putin foi determinante na eleição de Trump. Tudo para não responsabilizar o próprio umbigo pela perda de votos consequente da concentração de renda que os anos Reagan-Clinto-Bush-Obama causaram.

Enquanto a esquerda mantém a posição “sensata”, baseada em análises dos realistas, neorrealistas, liberais dos EUA da década de 90 e blablabla, a direita bate o tambor de guerra com as mais alucinadas opiniões. Um bando de jornalista de jornais de “centro” dos EUA abertamente falando que a Humanidade poderia sobreviver um inverno nuclear e que não existe saída possível da guerra que não a deposição à força de Putin. Não é um webstalinista/webmaoísta adolescente de Facebook/Twitter. É gente com coluna em jornal com circulação de milhões.

De quê adianta “ser sensato” em um debate assim? Esse jogo onde a esquerda é ponderada e a direita não tem nenhum pudor de falar as maiores insanidades tem apenas um efeito no longo prazo: tornar as insanidades aceitáveis.

É a porra da janela de Overton, conceito surrado por análises que apenas reforçam esse processo de radicalização da direita e ponderação da esquerda.

Aqui, claro, a resposta também não pode ser “então vou falar mentiras”. E muito menos defender a invasão de Putin.

É preciso rejeitar esse jogo que criaram para nos prender. Primeiro, dar muito menos relevância aos insanos que supostamente estão do nosso lado da fronteira. Se alguém chega falando que Putin está desnazificando a Ucrânica, a resposta correta é a mesma que teríamos na rua ao ouvir alguém esbravejando insanidades: passa correndo olhando pro outro lado. Bloqueia, silencia, esquece. Tira essa galera da vida, não dá a satisfação do debate, não perca tempo.

Porém, isso é só o princípio do princípio. A esquerda precisa ressuscitar um espírito radicalmente anti-guerra. Isso passa por rejeitar a acusação de “whataboutism”. Se existe algo de proveitoso nesse momento político, é que somos os únicos verdadeiramente anti-guerra da conjuntura.

Disputamos a população, que tem uma imensa parcela igualmente anti-guerra, com liberais que hoje defendem guerras sem pudores. A começar por essa! Se hoje Zelensky e Putin firmam um acordo de paz, essa galera que enche a boca pra falar que toda a esquerda defende Putin, ficaria decepcionadíssima com o herói Zelensky. Essa galera não quer “paz”. Ela quer que o complexo industrial dos EUA forneça mais armas para a Ucrânia. Um bando de bluecheck que ama falar de controle de armas nos EUA enchendo a boca para para falar “we need good guys with guns”(nos EUA, o argumento contra o controle de armas diz que “o único remédio contra um cara mau com uma arma é um cara bom com uma arma”, sim, eles são toscos). Mesmo que os “good guys with a gun” sejam neonazistas do batalhão Azov…

Mas, acima de tudo, é o momento de questionar, com todas as forças, o porquê da indignação da mídia internacional se restringir à Ucrânia e ignorar Iêmen, Palestina, Síria, Somália, Iraque, Afeganistão, Irã e tantos outros países afetados pela insaciável busca da indústria bélica dos EUA por novos mercados.

Apenas ser “ponderado” não nos levará a lugar nenhum. Tem que dar truco, tem que dobrar a aposta, tem que fazer uma contra-carga. Temos que quebrar o silêncio do Ocidente a respeito dos últimos 30 anos de guerras contra muçulmanos, asiáticos, árabes e africanos.

P.S.: Quem vive reclamando que a “esquerda identitária atrapalha” tem que dar uma mordida de língua simples e direta: nada mais útil para o atual contexto que criticar a preocupação exclusiva com a Ucrânia do que apontar o racismo nada velado da imprensa e do sistema político como um todo.

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