COMO USAR BOJACK HORSEMAN NA POLÍTICA: POR UM METAMODERNISMO POLÍTICO

Caio Almendra
8 min readJul 13, 2019

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Entre as minhas muitas frustrações está uma incapacidade de construir, de fato, algum descrição de algo que gosto de chamar de “metamodernismo político”. Hoje, resolvi voltar a essa tarefa e após reler David Foster Wallace. Sei que irei fracassar novamente mas esse é sempre o meu objetivo: fracassar melhor.

DAVID FOSTER WALLACE E O PÓS-MODERNISMO

DFW foi um autor, crítico literário e acadêmico norte-americano que tirou a própria vida em 2008 por depressão. Seu principal alvo era o pós-modernismo, e a consequente morte das “grandes narrativas” do século XXI, em especial na TV:

“I want to convince you that irony, poker-faced silence, and fear of ridicule are distinctive of those features of contemporary U.S. culture (of which cutting-edge fiction is a part) that enjoy any significant relation to the television whose weird, pretty hand has my generation by the throat. I’m going to argue that irony and ridicule are entertaining and effective, and that, at the same time, they are agents of a great despair and stasis in U.S. culture, and that, for aspiring fictionists, they pose terrifically vexing problems.”

O problema, e essa foi a grande frustração da sua vida, é que o pós-modernismo não pode ser destruído pela mera restauração do modernismo, como querem a ampla maioria dos seus críticos(principalmente, os críticos da pós-modernidade na política). A essa tentativa vã de retorno às grandes narrativas, como se a pós-modernidade não existisse, darei o nome de paleo-moderno. DFW percebeu que a ironia e o ridículo são demasiadamente efetivos para serem combatidos com a mera negação. As tentativas paleo-modernas encerravam-se em entricheiramentos inúteis. Qualquer negação da ironia como forma seria incapaz de vingar.

Por outro lado, ele percebeu que a vigência prolongada de um regime de ironia pela ironia geravam um desespero e paralisia na cultura e arte. A ironia seria um significante vazio e seu império seria um império de esvaziamento dos significados.

PEQUENAS ASPAS SOBRE O METAMODERNISMO NO AUDIOVISUAL

DFW, infelizmente, morreu antes de ver a solução que a criatividade artística achou para isso se tornar mainstream, ao menos na literatura e audiovisual: o metamodernismo*. Por metamodernismo, quero englobar todas as narrativas que se valem de uma estrutura narrativa irônica, ciente e transparente sobre a própria posição enquanto narrativa(ou seja, “meta-narrativa”) e aparentemente pós-moderna para transmitir um sentimento concreto e não o mero vazio da ironia.

Descrita dessa forma, o metamodernismo é suficientemente abrangente, ao menos no audiovisual. Nela, cabem filmes como Beach Bum e Springbreakers, do gênio-louco-cult Harmony Korine, ou mesmo comédias Community ou Rick and Morty, do gênio-pop Dan Harmon. E, claro, os audiovisuais de diretores negros norte-americanos, como Atlanta(do aprendiz-mais-brilhante de Dan Harmon, Donald Glover, o nome de diretor do rapper Childish Gambino) e Sorry to Bother You(do também rapper Boots Riley).

Claro que os autores que cito para descrever o metamodernismo dificilmente perceberiam qualquer semelhança entre Dan Harmon e seus pensamentos. Não vejo Moyo Okediji falando de Rick and Morty como uma obra metamoderna, da mesma forma que discute os desdobramentos da cultura afro, em especial dos artistas que resolveram “fazer o retorno” da América para a África. Mas essa esticada no conceito se justifica como um olhar centrado na pós-modernidade: se identificamos que é o esvaziamento dos conceitos e valores o grande resultado da pós-modernidade, há um comum entre as obras que buscam superar um formato moderno, ou seja, que não se assemelham ao paleomoderno, sem, contudo, cair no esvaziamento de sentidos que o pós-modernismo reserva.

Em outras palavras, é metamoderno a obra que não nega sua posição de narrativa nem mesmo dentro de suas narrativas mas não para desmontar a capacidade da própria narrativa de transmitir sentimentos verdadeiros.

SUBVERTENDO A PÓS-MODERNIDADE

Alguns artifícios são comuns em narrativas pós-modernas e são hackeados ou apropriados pelo metamodernismo. No caso do audiovisual, posso citar o (i) mockumentary, que se consiste em uma ficção que simula um documentário, como Os Deuses Devem Estar Loucos, de Jamie Uys, ou Zelig, de Woody Allen; (ii) o pseudo-documentário onde no mundo descrito em uma obra ficcional alguém produziu um documentário sobre um tema e que é exposto pela obra ficcional como forma de exposição de elementos narrativos, como aquela reportagem a respeito de Kane no início de Cidadão Kane, de Orson Welles; (iii) a quebra-da-quarta-parede, do Dom Quixote de Cervantes, aqui nas modalidades íntima, quando um personagem fala diretamente sobre o que pensa ao público, como em House of Cards, ou narrativa, onde um personagem fala diretamente ao público que tudo aquilo se trata de uma narrativa, como em Deadpool; ou, por exemplo, a pura e simples (iv) autorreferência, quando um personagem faz uma piada sobre algum elemento da narrativa, como quando Bojack Horseman comenta que séries de TV não deveriam ter monólogos grandes visto que a TV é um formato visual, três episódios antes de fazer um episódio inteiro composto apenas por um monólogo; entre outras formas narrativas típicas.

O que tem em comum em todos esses momento é uma assunção de que a obra é uma narrativa(e não uma abstração, uma ideia ou estória vindo de algum lugar não-especificado)pela própria narrativa. Todas essas formas narrativas visam assumir que são uma estória e colocar a discussão sobre o fato de serem uma estória dentro de si mesma.

Em outras palavras, os recursos pós-modernos visam discutir qual o ponto-de-vista da obra, discutindo, assim, a própria obra. Quando Os Deuses Devem Estar Loucos tomam uma forma narrativa documental mesmo sendo uma obra de ficção, a obra acaba por brincar ou mesmo questionar a produção de documentários a respeito de povos originários e o simples fato de ser um sul-africano branco a fazer um filme sobre a vida dos bosquímanos.

Ao fim e ao cabo, o pós-modernismo utiliza-se desses recursos para dizer “sou apenas uma estória”. Essa posição é eminentemente questionadora. Vejamos o caso da obra pós-moderna por excelência, o proto-pós-moderno Dom Quixote. Em Dom Quixote, um cavaleiro andante passa por diversas aventuras que ele descreve como épicas apesar de serem absolutamente irrelevantes e insanas. Também é uma obra com diversos artifícios pós-modernos: o livro é descrito como escrito por um autor fictício que encontrou um livro de memórias de um personagem fictício. O personagem Dom Quixote chega a demonstrar que sabe que ele é um personagem em um livro.

Ao fim, a mensagem de Cervantes é apenas uma: todos os contos de cavalaria não passam de contos. Todo o heroísmo dos cavaleiros, suas lutas pelos oprimidos e sua coragem são apenas estórias, narrativas mentirosas vazias de conteúdo.

O metamodernismo utiliza-se dessa mesma posição, assumir-se como apenas uma estória, para transmitir uma mensagem não-vazia. A partir da perspectiva de que o que se conta é uma estória, a obra metamoderna busca transmitir uma mensagem que seja supra-estória. Se as estórias modernas e paleomodernas tentam transmitir uma mensagem sincera pela abstração do ponto de vista, as estórias pós-modernas destroem tal narrativa pela afirmação irônica de que toda estória é apenas uma estória, as estórias metamodernas buscam transmitir uma mensagem sincera pela assunção irônica de serem um ponto de vista.

Vale comentar que esse não é um fenômeno pequeno. Ele é relevante para o marketing, com a ideia de marketing de propósito, por exemplo.

O METAMODERNISMO E A POLÍTICA

Metamodernamente já começo essa conclusão com a confissão que estou exausto e prestes a assumir esse texto como meu mais novo fracasso na tentativa de traduzir a metamodernidade para a política.

Traduzindo de forma muito simplificada tudo isso para as discussões políticas:

As narrativas modernas, fruto das tradições revolucionárias e reacionárias do século XIX, construíram-se a partir da pressuposta defesa dos grandes valores, como igualdade e liberdade. No curso do século passado, a divisão do mundo em bloco soviético e repúblicas ocidentais definiu o curso das narrativas modernas. Porém, com a disputa entre tais blocos, ambas narrativas ficaram repletas de cinismos. A defesa da “liberdade” pelo imperialismo norte-americano e europeu esbarravam nos relatos reais sobre o colonialismo na África e Ásia, bem como as operações Condor e demais apoio a ditaduras alinhadas com o capitalismo. Da mesma forma, a defesa da “igualdade” esbarrou nos diversos problemas do “comunismo realmente existente”. Ademais, a burocratização dos partidos comunistas e a penetração da ideologia capitalista dentro deles tornou outro ponto de cisão entre a narrativa e a realidade, um fértil de crescimento do cinismo.

Com a criação de uma posição social(burocrata) ligada à luta pelo comunismo e, portanto, uma posição que deixaria de existir com o sucesso da revolução, a relevância do ponto de vista do discursante pegou em cheio a narrativa revolucionária.

O objetivo desse texto, obviamente, não é discutir a história e as causas do sintoma mas o que fazer perante tal sintoma. O sintoma é o extremo cinismo do discurso político contemporâneo. Digo extremo porque o patamar atual de cinismo é tal que qualquer narrativa que busque afirmar-se como sincera tem resultado similar ao que DFW comentou: uma profunda impotência frente a ironia contemporânea. Em certo ponto, tal qual as obras paleomodernas, a capacidade de sensibilizar as pessoas para pautas a partir de uma narrativa política direta está discrepante do valor defendido.

Pensemos o caso do aquecimento global. Entre cientistas e ambientalistas, corre o comum questionamento “o mundo está acabando, por que ninguém faz nada?”. Na disputa de narrativas, contudo, a coisa se estabelece assim: os cientistas que denunciam a tragédia climática apontam as ligações dos negacionistas com as indústrias poluentes; de outro lado, os negacionistas reafirmam que são os cientistas que alertam para os riscos do são manipuladores políticos e sociais financiadas por interesses escusos. É claro que esses discursos não são equivalentes, o planeta está aquecendo de forma acelerada e perigosa. Mas no cinismo extremo, na crítica da posição do falante como forma de negar a validade da fala, estamos demorando mais do que deveríamos para um assunto tão sério.

Pós-moderno é tantas vezes é utilizado como xingamento para descrever pensamentos filosóficos dos mais diversos, de forma completamente atécnica e acrítica. Eu evito usar tal expressão ao máximo, justamente por sua imprecisão e inutilidade corrente. Porém, essa ideia que pincelei é o que melhor dá, na minha opinião, depreender do termo “pós-moderno” na política.

Qual seria uma posição metamoderna? Bem, a assunção preventiva da posição social do falante como parte da narrativa. Isso visaria evitar que a resposta do outro lado fosse explorar dessa posição social do falante como uma fraqueza. Notem, é exatamente isso que a publicidade tem feito. Assumindo que é impossível não ser visto como uma publicidade, comumente peças publicitárias quebram a quarta parede e comentam ser apenas uma peça publicitária. Além de, claro, gerar atenção pela forma inusitada.

Mas não é apenas um artifício: é a inclusão da posição social pela forma o que, também, é uma forma de se criticar a própria estrutura social. A difusão de uma forma metamoderna de discutir política colocaria as discussões sobre quem são os falantes em evidência, ressaltando a disparidade de poder entre elites e bases populares. Ela geraria a necessária desconfiança perante os poderosos, enquanto a difusão pós-moderna gera, hoje, a desconfiança com qualquer discurso(o que é muito aproveitado pelos poderosos).

Eu queria falar sobre as não-conclusões da pesquisa da Angela Nagle sobre os grupos mais radicais(e masculinos) da extrema-direita contemporânea, sua disputa contra os chamados social justice warriors e dar um enfoque melhor para um debate que considero relevante mas que ela tomou de forma meio atravessada em Kill All Normies. Infelizmente, meu fracasso fica, hoje, por aqui.

*Por metamodernismo, não falo do termo filosófico utilizado por Nietzsche ou Heidegger mas do termo artístico cunhado por Jayro Luna e Philadelpho Menezes na década de 80, e, principalmente, das concepções de Moyo Okediji a respeito da arte Afro-Americana e suas tensões entre modernismo e pós-modernismo, assim como o Manifesto Metamodernista de Luke Turner.

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