CÂMARAS DE ECO: SABEDORIAS E BURRICES COLETIVAS

Caio Almendra
5 min readMay 9, 2019

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Em seu livro “A Sabedoria das Multidões”, James Surowiecki afirmou que “a inteligência de um grupo sempre será superior à inteligência do mais inteligente desse grupo”.

O livro é de 2004 e comumente associado a uma suposta “ingenuidade ciber-utopista” da década passada.

Recentemente, começamos a discutir a formação de “câmaras de eco”. Câmaras de eco seriam espaços onde crenças incorretas seria amplificadas ou reforçadas pela comunicação e repetição em espaços fechados.

Aqui entramos em uma discussão sobre desejo, spinozista até. Uma câmara de eco é um espaço desejável porque, ali, todos são similares a ti, ao mesmo tempo que, ali, você e os demais se tornam mais semelhantes entre si.

Em outras palavras, é um espaço confortável(“safe space”, inclusive…) porque ninguém ali contraria frontalmente suas visões. Ao mesmo tempo, qualquer diferença nesse espaço é delapidada em formar uma semelhança: ideias diferentes são censuradas e retorcidas até serem compatíveis.

Tal qual um tênis velho, é confortável estar lá porque ali se conformou ao meu pé. Porém, tal pé também se molda ao tênis velho.

Pensemos na metáfora do ano, o terraplanismo. A galera da Terra Plana forma um grupamento específico, receptivo para seus participantes, desejável e desejante de seus membros. Quando alguém ali chega com dúvidas, elas são moldadas por certezas já constituídas, por textos previamente feitos. Um neófito chega lá dizendo que tem uma dúvida sobre o formato da Terra, digamos, sobre o porquê os aviões não passam pela Antártida. Ali, essa dúvida é bem recebida, qualquer explicação para tal dúvida é chamada de irrazoável. Opera-se o “confirmation bias”, o viés de confirmação.

Foi o processo de formações de câmaras de eco que, nessa década, moldou de forma significativa as chamadas “guerras culturais” e, segundo muitos afirmam, tiveram influência decisiva a eleição de Trump e Bolsonaro(entre outros). Foram em fóruns fechados que alguns grupelhos de extrema-direita ganharam uma potência não antes imaginada.

Claro que as câmaras de eco são temáticas. Uma câmara de eco com tema “política” não ocasionará uma uniformização no gosto de filmes… a não ser que tais discussões sejam intercaladas e recorrentes. O grande sucesso das bolhas alt-right é justamente a capacidade de construir uma narrativa onde todos os temas são abordados. Isso explica as mais absurdas alegações da ultra-direita, como, por exemplo, aquelas sobre a Disney ser comunista gaysista revolucionária e Capitã Marvel ser uma parte de seu plano de dominação mundial e castração masculina universal.

Essa narrativa funciona de forma curiosa como uma paródia do “progressismo” de sites como o BuzzFeed. As críticas à formação histórica das relações interpessoais e às opressões dela decorrentes, o que chamamos de patriarcado, é contraposto com críticas às rebeliões e transformações dessa formação, “a ditadura feminazi gaysista”. Mas esse progressismo também é uma caixa de ressonância: mesmo que muito mais próximo da realidade do que qualquer espaço da ultra-direita, também é dali que saíram afirmações absurdas como a amputação peniana de milhares de brasileiros sem acesso à água potável e saneamento básico ser de responsabilidade do machismo.

Porém, é uma ilusão achar que esse fenômeno está restrito à direita e à internet. Eu diria, inclusive, que há muitas e muitas décadas a ultra-esquerda é formada por um conjunto infindo de câmara de eco. Esse é o nascedouro do dogmatismo.

A Sabrina Fernandes contou uma piada para descrever a fragmentação da esquerda e a ultra-política:
“Uma vez que vi um cara em uma ponte prestes a pular. Eu disse: “Não faça isso!” Ele disse: “Ninguém me ama”. Eu disse: “Deus te ama. Você acredita em Deus?”
Ele disse “sim.” Eu disse: “Você é cristão ou judeu?” Ele disse: “Um cristão”. “Eu também”, disse. “Protestante ou católico?” Ele disse: “Protestante”. Eu disse: “Eu também, qual franquia?” Ele disse: “Batista”. Eu também disse: “Eu também, Batista do Norte ou Batista do Sul?” Ele disse: “Batista do Norte”. Eu disse: “Eu também, Batista Conservador do Norte ou Batista Liberal do Norte?”
Ele disse, “Batista Conservador do Norte”. Eu também disse: “Eu também, Batista Conservador do Norte da região dos Grandes Lagos, ou Batista Conservador do Norte da Região Leste?” Ele disse, “Batista Conservador do Norte da região dos Grandes Lagos”. Eu disse: “Eu também!”
“Batista Conservador do Norte da região dos Grandes Lagos Conselho de 1879, ou Batista Conservador do Norte da região dos Grandes Lagos Conselho de 1912?” Ele disse,”Batista Conservador do Norte da região dos Grandes Lagos Conselho de 1912.” Eu disse: “morra, herege!” E eu empurrei ele.”

Ora, qual o processo afetivo e intelectivo que permite que pessoas tão “próximas ideologicamente” se odeiem tão intensamente? Ou melhor, como pode as pequenas diferenças na proximidade serem tão relevantes a ponto de causar rupturas?

Eu desconfio que envolva um exemplo de câmara de ressonância muito intensificada. As re-confirmações viram tão necessárias que qualquer divergência minúscula vira um grave problema. Ademais, perante qualquer mudança na complexa conjuntura política, os grupamentos políticos organizados como câmaras de ressonância rapidamente perdem sua capacidade de garantir conforto político para seus participantes. Em outras palavras, a qualquer situação da sociedade que force uma opinião política mais intensa e divida internamente os grupos, eles racham, dado que são incapazes de lidar com qualquer diferença política interna. Só observar o que foi a esquerda no entre 2015 e 2017.

Pois bem. A nova extrema-direita funciona como caixa de ressonância. O progressismo funciona como caixa de ressonância. E a esquerda e, em especial, a ultra-esquerda funcionam como caixa de ressonância. Por que o resultado político de cada uma delas é tão diferente? Por que a extrema-direita chegou ao poder, o progressismo continua relevante e a esquerda tem acumulado derrotas?(No Brasil… na oposição anti-Trump há uma esquerda em crescimento)

Bem, diferenças outras de tática, diferenças de modelo e o próprio conteúdo político de cada um desses setores são relevantes. Mas, eu pontuaria outra coisa: a tarefa de cada uma delas é muitíssimo diferente. Enfrentar o capital é muitíssimo difícil. Historicamente, o capitalismo teve a capacidade de manter-se estável, de se regenerar dos danos(auto-impostos ou dos ataques). Mais que isso, por sua natureza, a luta contra o capitalismo precisa ser massiva.

Na relação capital-trabalho, a formação e radicalização de um único trabalhador é praticamente irrelevante. Enquanto cada pessoa menos homofóbica, menos machista, menos racistas ou cada gay, mulher ou negro menos oprimido pelo medo, é uma vitória para o movimento anti-opressões, um trabalhador grevista pode ser substituído se a greve não for ampla o suficiente(ou às vezes ele é demitido mesmo com greves amplas). São simplesmente batalhas diferentes com campos de batalhas diferentes que, portanto, demandam ações diferentes.

Um esforço permanente de abertura, de renovação de referências, de mudanças de paradigmas, é indispensável. Se você sentou em seu grupo político e todos concordam contigo, tem algo de errado.

É preciso esforço para garantir que a sabedoria das multidões não seja substituída pela burrice da seita/patota.

P.S.: Há um defeito oposto igualmente perigoso. No afã de não ter discussões que possam gerar desconfortos políticos, alguns grupos políticos deixam de ter qualquer discussão política. É impressionante mas acontece de fato: as reuniões viram grandes comitês executivos, sem jamais haver qualquer debate.

O exercício de formação de consensos é muito complicado justamente porque em qualquer dos extremos existem armadilhas.

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