ARTE TORTURADA— A POLÊMICA CARLOS BOLSONARO
Como a censura dos bolsonaros a arte opera e qual seu objetivo final
A polêmica do dia foi o compartilhamento de uma foto feita por uma artista por Carlos Bolsonaro, filho mais velho do clã dos boçais. E, mais uma vez, sinto que vou nadar contra a maré com esse texto.
Primeiro, precisamos olhar os fatos. Um artista compartilhou uma foto em que aparecia um homem ensanguentado com um saco plástico transparente na cabeça e os dizeres “Ele Não”, em referência a Jair Bolsonaro. A foto foi compartilhada por Carlos Bolsonaro, filho de Jair, com uma legenda que dizia “Sobre pais que choram no chuveiro!”.
“Ele não” é uma referência ao movimento, inciado pelas mulheres, de rejeição à Bolsonaro, que tem seu primeiro ato no sábado, em diversas cidades do Brasil. O “Sobre pais que choram no chuveiro” é uma referência homofóbica à suposta vergonha que pais tem ao descobrir que seus filhos seriam homossexuais.
Depois desse momento, verificaram a conta do artista no instagram e a encontraram praticamente vazia(ou apagada). Não se sabe se ele era pouco ativo nessa rede social, se abriu apenas para isso ou se, por receio de retratações, o dono fechou a conta.
A foto ganhou as redes sociais rapidamente. Em parte, por conta do momento do país e da altíssima rejeição à Bolsonaro. Mas, também, porque a fotografia é uma excelente peça de arte. É palpável o desconforto que ela causa, a angústia que ela submete quem a vê. Como arte de denúncia à tortura, é uma obra, a meu ver de leigo, excelente, emocionando e marcando imediatamente…
O PÉSSIMO HÁBITO DA AUTOSSATISFAÇÃO
De súbito, a minha timeline, formada majoritariamente por pessoas de esquerda, foi tomada por essa foto. A maioria, infelizmente, apenas dizia “que absurdo” ou simplesmente não dizia nada e compartilhava mesmo assim.
Essa é uma prática de quinta categoria que a esquerda nunca se desfaz. Como pressupomos que nossos valores sempre são superiores, apenas compartilhamos o que a extrema-direita faz e pensa, sem apresentar o contraponto. Ficamos autossatisfeitos, com a sensação de “dever cumprido”, ao compartilhar uma foto dessas, mesmo sem termos feito embate algum.
Se você não tem 15 minutos para explicar, da sua forma, porque tortura é algo ruim, nem procurar algum amigo que explicou porque e compartilhar seu texto, simplesmente não compartilhe a postagem da extrema-direita e espere ter esse tempo. O que vinhamos fazendo, ou seja, simplesmente ficarmos histéricos com como a extrema-direita pensa ou com o fato dela existir, não tem dado certo. Hora de mudar de tática.
MAS O QUE CARLOS BOLSONARO QUERIA?
Bem, a hashtag “Ele não” tem desesperado o clã dos Bolsonaros. Sem saber o que fazer, eles tem atirado para todos os lados. A hashtag “Ele Sim”, a primeira resposta deles, não emplacou. Tentar mexer para o foco para a homofobia é a atual tentativa. Mas não só.
Os Bolsonaros tem uma questão específica com as artes, uma que a esquerda, qualquer liberal autêntico ou qualquer pessoa com uma nesga libertária em si e todos que os combatem, devem ter em mente. Ontem, Pablo Ortellado fez um texto que foi muito pouco lido, por conta de uma polêmica pouco produtiva a respeito de uma única palavra. Eu, felizmente, li além dessa palavra, então lembro desse trecho daqui:
“Assim, embora não seja exatamente um fenômeno das classes populares, seu discurso é anti-elitista, rejeitando o intelectualismo universitário, o jornalismo profissional e o anticonvencionalismo das artes”.
O que diabos haveria no anticonvencionalismo das artes que os bolsonaros tanto odeiam?
Bem, aqui precisamos retornar ao caso mais famoso de censura da extrema-direita às artes, o Queermuseu — Cartografias da diferença na arte brasileira. Os bolsonaros odeiam as artes mas não porque tem uma opinião moral, filosófica, artística ou estética sobre elas. Eles odeiam pelo potencial que a arte tem.
Para quem não se lembra, em 2017, o Queermuseu era uma exposição de temática queer que foi violentamente censurada pelo MBL, que plantou “militantes” na porta da exposição para agredir quem tentasse entrar. Os bolsonaros fizeram discursos em seus respectivos parlamentos acusando a exposição de zoofilia. A peça “Cenas do Interior II” foi uma das principais atacadas, por mostrar dois homens praticando sexo com uma cabra um tanto antropormofizada.
Seriam os bolsonaros guardiões da moral? Na verdade, não. No mesmo ano de 2017, em uma entrevista de TV, Jair Bolsonaro afirmava, em tom jocoso, ter praticado zoofilia com galinhas. A classificação indicativa do programa de TV era 12 anos. Do Queermuseu, era 14.
O objetivo, portanto, nunca foi “proteger nossas crianças”. O objetivo é esterilizar a arte. O objetivo de atacar o Queermuseu, era sumir com as tais “diferenças cartografadas”. Se as peças da exposição mostravam a diversidade, inclusive sexual, na arte, censurar tal arte é estratégico para defender a ideia de que o Brasil deve ser não diverso, heteronormativo, ter uma única religião inquestionável e viver sobre um sistema autoritário.
CÁLCULO OU ERRO? NENHUM DOS DOIS, APENAS MODUS OPERANDI
Carlos Bolsonaro não fez um cálculo preciso sobre compartilhar essa imagem. Ele não calculou essa repercussão toda. Também, não foi precisamente um erro de cálculo que acabou com sua eleição. Foi, apenas, o modus operandi dos bolsonaros sobre o tema arte.
Toda vez que qualquer fotografia, pintura, cena de filme ou similar traz como tema a violência, os bolsonaros, bem como a extrema-direita mundo afora, vão lá e acusam a peça de “apologia à violência”. O objetivo é duplo: (i)ao acusar artistas de apologia à violência, eles nublam as acusações sobre serem eles os apologistas a violência, os defensores da tortura e dos torturadores, os caras que acham possível que uma mulher mereça ser estuprada e etc, etc, etc, e, ao mesmo tempo; (ii) eles censuram a arte que denuncia a violência, pavimentando um mundo onde não se possa usar a arte para denunciar as violências reais da sociedade.
Em Israel, ficaram comuns vídeos de soldados cometendo barbaridades contra palestinos. A solução do parlamento israelense foi impressionante: proibir que soldados fossem filmados. Há algum tempo, houve um reboliço a respeito do algoritmo do FB que, no afã de evitar o compartilhamento de pedofilia infantil, proibiu a divulgação da mais famosa foto da guerra do Vietnã, aquela tirada por Huynh Cong Ut que mostrava uma menina de nove anos de idade fugindo do ataque de napalm.
Qualquer relação com a foto de hoje, que foi originalmente criada como uma denúncia das ideias violentas de Bolsonaro, não é coincidência. É o objetivo mesmo.
Tomem muito cuidado! A foto gera desconforto e deve gerar mesmo. É isso que a faz uma excelente peça de arte-denúncia. Mas não pode ser o desconforto que nos leva a rejeitá-la. A foto é EXCELENTE. A tentativa de Carlos Bolsonaro de levar essa fotografia ao campo do incentivo à homofobia é a verdadeira e única violência do caso. Não há apologia à tortura: há homofobia e abuso de uma arte contrária à tortura.
PS: E AS ELEIÇÕES COM ISSO? AS LINHAS TORTAS
Tudo não pode ser resumido a eleições. A censura às artes, ainda mais as mais críticas, é um dano de longuíssimo prazo, um que se estende além das eleições. Então, minha vontade seria apenas dizer “foda-se as eleições, estamos vivendo uma situação de censura”. Precisamos manter todos os nossos dentes para nos defender de um eventual governo autoritário. E a arte e o humor são dois importantes dentes, dois que a esquerda tem tratado muito mal.
Mas, bem, não dá para fugir do tema eleições, então vamos lá.
Bem, apesar de não ser um erro de Carlos Bolsonaro, de ser um método de toda a família e novamente uma prática da extrema-direita mundial, esse caso pode ter consequências negativas nas eleições. Mas isso é incerto e tem linhas tortas.
Rapidamente, o exército de bots e boçais irão às redes dizer que não foram os bolsonaros que fizeram a foto de uma pessoa sendo torturada e, sim, a esquerda. Acusarão a esquerda de espalharem fake news e distorcer as coisas. O resultado disso parece ser o de sempre: fidelizar uma base menor, que eu chamaria de “núcleo duro do bolsonarismo”, e perder a mão de grupamentos médios, dos nem-nem como diria Marcos Nobre para designar os não-petistas, não-bolsonaristas.
De outro lado, os bolsonaros foram o assunto do dia, com repercussão maior do que a habitual, apesar das quedas nas pesquisas. Mas isso pode ser negativo. Existe um fenômeno curioso com fotos com violência gráfica demais, por mais que sejam denúncias, você parelha em sua cabeça o transmissor com a violência. Jornalistas daqueles pequenos tabloides marrons que são repletos de fotos de cadáveres não cometem nenhum assassinato… mas os jornais são sempre vistos como violentos.
E tudo que os bolsonaros não querem, hoje, é serem associados com a violência. Note, Jair foi esfaqueado e não conseguiu passar como vítima. O resultado prático da facada foi uma associação ainda maior de Bolsonaro à violência e à desordem. A foto pode muito bem ser mais um desses casos onde eles acham que serão capazes de dizer que seus adversários são os violentos mas, no final da conta, apenas evidenciam a violência do discurso do Bolsonaro.
Afinal, é impossível dissociar Bolsonaro da defesa da tortura.