ANTINATALISMO, o peculiar pessimismo do não-nascer

Caio Almendra
6 min readFeb 9, 2019

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Sobre True Detective, Castlevania, um indiano desmiolado e a ideia de que devemos parar de nos procriar.

Saiu a notícia sobre um indiano desmiolado que está processando os próprios pais por não ter sido consultado se ele queria nascer(aparentemente, ele não queria…), a notícia viralizou e lá vou eu escrever mais um texto muito mais pretensioso do que sou capaz de fazer…

O ANTINATALISMO É UM PESSIMISMO

A ideia não é recente. Hegesias de Cirene já defendia-a no século III AC: a humanidade deveria deixar de se procriar até não existir mais nenhum ser humano. Ao longo dos séculos, alguns autores defenderam essa ideia, como o filósofo árabe Al-Ma’arri, o alemão Schopenhauer ou o militar Lawrence da Arábia. O primeiro era cego e possivelmente sofria alguma doença degenerativa(possivelmente esclerose múltipla), o último adotou tal posição após ser torturado e estuprado durante a guerra e Schopenhauer foi provavelmente o ser mais neurótico que já pisou na terra.

Hegesias era foi possivelmente influenciado pelo Budismo(e há quem interprete que Buda foi um antinatalista): para ele, o propósito da vida era evitar o sofrimento e, evitar por completo seria impossível, a solução seria deixar de existir. Seu livro “Morra de fome” foi tão popular em Alexandria e causou tantas mortes que ele acabou banido.

O antinatalismo é, portanto, um pessimismo político radical e cabe começar esse texto entendendo quais as origens e os sentidos do pessimismo. Um pessimismo autêntico configura-se como uma ausência simultânea de esperança* e nostalgia. Vejamos um caso de um pessimismo muito mais compreensível que o antinatalismo, o afropessimismo de Frantz Fanon.

Fanon foi fortemente influenciado por Sartre e Simone de Beauvoir, portanto, a discussão sobre a construção da identidade do negro sob a sociedade ocidental era seu tema(de forma análoga a como Beauvoir pensou a formação da identidade da mulher sob o patriarcado). O afropessimismo surge da ideia que o negro nas Américas foi privado de um passado desejável pela escravidão. Não há nostalgia, não há paraíso a ser reconquistado. Porém, simultaneamente, sob o domínio dos brancos e sob a identidade branca-ocidental, não há identidade negra possível: ou ela é uma paternalização condescendente do que hoje chamamos de “desconstruídos” ou a estereotipação maliciosa dos abertamente racistas.

Sem esperança e sem nostalgia, imperaria o pessimismo, portanto.

O antinatalismo é o pessimismo mais radical antes de teses genocidas ou suicidas(e, não à toa, Hegesias era um filósofo do suicídio). Desse modo, a ascensão desse pensamento nos testemunha dois fatos simultâneos: uma não-nostalgia e uma não-esperança.

CULTURA POP PARA ALIVIAR A BARRA

Se vocês aguentaram até aqui, merecem algum agrado. Existem alguns personagens recentes que defendem uma concepção antinatalista. O detetive Rust, interpretado por Matthew McConaughey, defende abertamente essa posição. A série teria inspiração em Nietzsche(um dos filósofos mais pessimistas) mas lentamente cede a uma narrativa mais comum: Rust perdeu a filha de dois anos em um acidente de carro, a perda destruiu seu casamento e ele jamais se recuperou da depressão.

Talvez mais interessante, apesar de não ter citações tão ricas, seja a animação Castlevania. Nela, a esposa de Drácula, uma nobre e gentil médica, é executada pela igreja católica. Em resposta, Drácula resolve destruir a humanidade pela invocação de um exército. Para tanto, ele toma como aliado Hector. A dualidade entre a posição de Hector e Drácula denota duas posições pessimistas muito distintas. Drácula é um melancólico genocida. Seu desejo por sua esposa é insolúvel, não restando desejo algum para se sentir. Sem ser capaz de deixar de desejar sua esposa ou de consumar tal desejo, Drácula recorre ao genocídio.

Hector deseja o fim da humanidade mas tal desejo não é oriundo de qualquer espécie de trauma. Ao contrário de Rust, seu antinatalismo é absolutamente autêntico: ele ama os animais(a ponto de reanimá-los) e acha que a humanidade foi simplesmente um erro. A melhor forma de consertar tal erro e, assim, proteger a natureza é exterminar a humanidade de forma indolor. Se fosse sua escolha, ninguém mais procriaria e a humanidade pacificamente chegaria ao fim. Impossibilitado de tomar esse caminho, ele cria o exército de Drácula mas impõe uma condição: o genocídio deverá ser o mais indolor possível. O genocida e o antinatalista se unem em meio termo.

Em certo ponto, o antinatalismo de Hector é, acima de tudo, uma postura ecologista.

O ANTINATALISMO CONTEMPORÂNEO TESTEMUNHA A CATÁSTROFE AMBIENTAL

Bem, o caso do indiano que virou notícia nessa semana, viralizou e me inspirou a escrever esse texto não é único. Existe uma crescente corrente antinatalista, com filósofos como David Benatar, Gerald Harrison e Julia Tanner. Parte significativa desse movimento é composta por veganos. São basicamente os Hectors da vida real.**

Não podemos ignorar os argumentos: nessa semana, saiu uma notícia de uma pesquisa que relacionou a morte dos povos originários dos continentes americanos com a micro-era do gelo do século XVI. Quando as doenças trazidas pelos europeus dizimou boa parte da população(que estima-se ser entre 5 e 10 milhões de pessoas) no continente, a agricultura foi interrompida e florestas cresceram onde antes haviam plantações. O resultado teria sido a captura massiva de carbono da atmosfera nos anos seguintes e o consequente esfriamento planetário.

Mas, acima de tudo, esses antinatalistas dão o testemunho de duas coisas: a sensação de que não há um passado a se retornar e a sensação de que não há a esperança no futuro.

Esse é o momento sombrio que vivemos, a frase já clichê que Fredric Jameson atribuiu a alguém que ele não lembra: “é mais fácil pensar no fim do mundo do que no fim do capitalismo”, sucedida pela inexistência de um passado que valha ser nostálgico.

E como se livrar dessa melancolia tão profunda que nos leva a pensar no fim da humanidade como alternativa razoável para o mundo?

Bem, o filósofo croata Srécko Horvat e a filósofa eslovena Alenka Zupancic tem uma alternativa interessante. Para ele, no pós-Iugoslávia, os países viveram uma situação singular. De um lado, a vida econômica piorou significativamente com o fim do socialismo. De outro, a nostalgia está impossibilitada pelo histórico nefasto da guerra pós-separação, do ódio racial e religioso. Esse seria o deserto do pós-socialismo(Srecko é autor do livro “Bem-vindo ao deserto do pós-socialismo”) e os pós-iugoslavos sentiriam o mundo atual como um pós-fim do mundo.

Zupancic se soma à discussão citando um texto do crítico literário Maurice Blanchot chamado “O Apocalipse é Decepcionante”. Nesse texto, Blanchot, envolto com os medos apocalípticos ligados à Guerra Fria e com o lançamento de “Dr. Strangelove” de Stanley Kubrick, percebe que a humanidade, enfim, se entendeu como um todo único. É a possibilidade de nossa derrota e término enquanto espécie que nos demonstra como somos uma coisa só. Consequentemente, o planeta é uma coisa só. É a possibilidade da perda da coisa que nos faz refletir sobre a natureza do que há a se perder. E, ao repararmos nessa coisa a ser perdida, reparamos na sua pequenez e simplicidade.

Esse talvez seja o grande sentimento, ou melhor o próprio estado dos afetos***, desse momento que vivemos: o mundo é pequeno e todas as possibilidades são óbvias e tediosas. Esse, talvez, seja o sentido do pós-modernismo, com o fim das grandes narrativas(quer de derrota do capitalismo pelo comunismo em nome da igualdade, quer de derrota do comunismo pelo capitalismo em nome da liberdade, bem como com a derrota de todas as alternativas intermediárias, a começar pela social-democracia europeia e o welfare state), sobra-nos a realização de um mundo estanque, sem aventuras, sem grandes emoções.

Se quisermos mobilizar qualquer coisa que salve o mundo da catástrofe ambiental em curso(que, considerando que tal catástrofe é filha e inerente ao capitalismo, ao crescimento infinito da economia e etc, é necessariamente a criação de uma imaginação a respeito de um mundo pós-capitalista), devemos, antes de mais nada, tornar o mundo excitante novamente.

Acredito ser essa a perspectiva a ser alimentada para se mobilizar afetos revolucionários, precisamos tornar novamente o mundo excitante. Essa é minha perspectiva em relação a dualidade “melhorar pequenas coisas” vs “se preocupar com a catástrofe global”: apenas lutando no micro e vencendo seremos capazes de tornar o mundo excitante o suficiente para fazermos as pessoas lamentarem o fim do mundo. E o maior sinal de que estamos tediosos é a ascensão de perspectivas antinatalistas.

*(Aqui “esperança” não entendida como o sentimento vulgar e paralisante dos mercadores de futuros. Nesse texto, a esperança é a existência de uma abertura qualquer sobre o futuro e não o sentimento que tal abertura causa. A ausência de esperança reflete a inexistência de uma gama de possibilidades a se apostar ou seja o entendimento da inexistência de possibilidades futuras)

**(Notem, esse não é um movimento semi-natalista, como aquele realismo que afirma ser melhor ter menos filhos e adotar mais crianças sem lar. Essa é uma posição política não-radical: busca-se uma melhora da sociedade sem, contudo, o fim completo da humanidade.)

***(Aqui, quero fazer uma referência ao conceito de estado da arte ou de estado da técnica: o estado do sentimento é o conjunto das possibilidades sentimentais de uma época. Ou, parafraseando a definição wikipédica de estado da técnica: em outras palavras, são todas as possibilidades sentimentais sentidas pelo ser humano, em condições de serem sensibilizadas para mobilizar emoções e afetos)

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