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O sujeito omisso em Green Book e o sujeito omisso em Infiltrado na Klan
O sujeito omisso em Green Book e o sujeito omisso em Infiltrado na Klan
Eu gosto muito mais de falar de cinema do que de política. Eu evito, contudo, porque cinema movimenta paixões mais profundas do que política. Muito mais profundas. Eu, por exemplo, prometi a mim mesmo nunca mais falar de Contos de Aia sem ser um espaço completamente seguro e cheio de amigos, porque uma vez resolvi colocar minha colher em um debate de quase 40 anos sobre a violência e a fantasia no livro e me arrependi tremendamente.
Mas, é isso, eu não sou prudente e vou meter minha colher na última polêmica, só para sentir o prazer de ser apedrajado virtualmente. Afinal, está rolando uma polêmica entre Green Book e Infiltrado na Klan…
Antes de mais nada, um resumão cheio de spoilers.
Green Book acompanha três meses na vida de Tony Lip e Don Shirley. Tony Lip é um descendente de italianos pobre e desempregado que acaba arrumando um emprego temporária levando Don Shirley em uma turnê pelo “sul profundo”, estados mais racistas e violentos contra negros durante a época da segregação nos EUA. Shirley é um pianista brilhante, negro e homossexual. O filme segue uma fórmula clássica: duas pessoas muito diferentes aprendendo a gostar uma da outra durante a convivência forçada. Lip é racista, bronco, pobre. Shirley é negro, refinado, rico.
O filme foi acusado de ser mais um filme sobre um “branco salvador”. Essa é uma fórmula clichê que acaba por invisibilizar o protagonismo do negro na luta contra o racismo. Parte significativa dessas críticas são repletas de razão. É ridículo um filme mostrar um negro aprendendo a comer frango frito com um branco na década de 60. O retrato da segregação, apesar de violento, parece-me insuficiente para descrever o terror do momento. E, no final das contas, é um filme para você se sentir bem ao sair do cinema… o que não me parece ser algo em sintonia com o tema.
Boa parte dessas críticas foram impulsionadas pela família de Don Shirley. O retrato que o filme faz da família não é dos melhores, em dado momento, Shirley comenta que não fala com o irmão, que eles seriam brigados e etc. Só tem aquele pequeno probleminha com isso tudo… a família não tem o monopólio da contação de história sobre o parente morto. Da mesma forma, a própria História não tem o monopólio sobre a ficção: um filme deve ter liberdade criativa de mudar parcelas da história, em prol, inclusive, de uma verdade maior que a realidade. Se o filme fosse um bom retrato das relações entre raça e classe, entre cidadãos cosmopolitas, negros e etc, e pessoas pobres conservadoras, essa história valeria um ou outro atropelo sobre “a verdade dos fatos”.
Em parte, o filme mistura dois clichês mas só estamos discutindo um deles. O outro está omisso. E eu vou apelidá-lo de “Vampirismo de Classe”.
O vampirismo de classe é um clichê narrativo bastante conservador pelo qual uma pessoa das classes aristocráticas “perde sua vitalidade” e, assim, precisa fazer um passeio pelas classes populares para reencontrar o sentido da vida. O caso mais evidente desse clichê é Titanic, onde a jovem aristocrata Rose tem uma vida enfadonha nos setores exclusivos do navio para encontrar a felicidade dançando no porão super-lotado dos pobretões. O clichê é conservador porque, no final das contas, ele coloca uma certa “dignidade” na pobreza com o objetivo de justificá-la. “Não sejam ricos, não almejem dividir a riqueza, aceitem ser pobres porque é sendo pobre que se é feliz”. Essa é a mensagem, que é essencialmente reacionária.
Ora, se essa fórmula é tão clichê a ponto de ser o roteiro de um filme que foi recorde de bilheteria e arrebatamento de prêmios, por que não discutimos ele, a ponto dele ser apelidado por uma pessoa qualquer na internet? Bem… porque falta alguma dimensão de classe no debate público.
O complexo do salvador branco é descrito como uma pessoa branca descrevendo o que é ser negro. Ora, existem diretores de filmes que são negros… mas não existem em Holliwood diretores e roteiristas pobres. Estar na alta produção cinematográfica discutida por críticos é, em si, fazer parte de uma casta muito específica, de uma aristocracia. O vampirismo de classe nasce, inclusive, de uma certa nostalgia de parte desses diretores quando rememoram o tempo anterior à chegada nessa aristocracia e se lembram felizes, muitas vezes, inclusive, quando crianças.
“Porra, mas o filme tem dois clichês narrativos, ele deve ser péssimo”. Green Book tem diversos defeitos. Mas talvez seja o conflito desses dois clichês que tenha algum valor.
Se Tony Lip é o salvador branco de Don Shirley, Don Shirley vampiriza a vitalidade de pobre de Tony Lip.
Essa relação simétrica de clichês cria uma relação antagônica-amorosa entre raça e classe. E essa é o mérito do filme, em uma época em que o governo Trump escancara a divisão entre o sul profundo conservador, com suas marchas neofascistas em Charlottesville e os movimentos sociais progressistas e às vezes dessintonizados das angústias da classe trabalhadora. Por sinal, a própria Holliwood, com seus atores, diretores e produtores, pagando de progressistas, se vê dessintonizada ao notar que faz parte de um país que elegeu Donald Trump. O filme fez sucesso nesse espaço meta-narrativo.
Para resumir esse espaço meta-narrativo, podemos dizer que Don Shirley representa a própria Holliwood, com seus valores vanguardistas no aspecto “social”, sua cosmopolitanidade, refinamento e aristocracismo. Tony Lip representa os EUA profundo que votaram em Trump. O filme, portanto, realiza a catarse que Holliwood tanto precisava.
Após a eleição de Trump, Holliwood acordou numa ressaca moral imensa: como a super-poderosa máquina ideológica do país, a maior indústria do mundo, perdeu o controle do próprio país? Algumas das pessoas mais poderosas do mundo acordaram se sentindo impotentes. Eles amavam o liberalismo tokenizado e simpático de Obama, sonhavam com repeti-lo com “a primeira mulher presidente” e viram todo esse sonho de progresso social sem mudança econômica(a famosa utopia sem utopia) virar fumaça de um dia para o outro, em nome de uma antítese de si mesmo.
O problema para as críticas é que sem a presença desse sujeito, qual seja, o “pobre”, no discurso público a respeito de Green Book, fica difícil avaliar o filme. Quantos frangos fritos o filme tem para os pobres? Enquanto estamos achando momentos e mais momentos de racismo no filme, estamos refletindo sobre o profundo preconceito social dele? Ora, o filme é centrado em Tony Lip não apenas por conta do complexo de branco salvador mas, também, porque Tony Lip é o saco de pancada do humor do filme. A maioria das cenas engraçadas existem porque o filme zoa Tony Lip. É ele que é burro, bronco, confunde Chopin com “Joe Pan” e etc.
Em boa parte do filme, ele se reveza entre zombar de um personagem para outro, hora mostrando Shirley como elitista e socialmente insensível e Lip como um branco completamente idiota, quase como se ele gostasse de espancar esse elitismo. E, nisso, talvez até sem perceber, o filme seja uma autoflagelação da própria Holliwood. E é isso que completa uma certa catarse.
Em sua defesa, o filme traz dois momentos bem interessantes desse conflito. O primeiro é quando Shirley é espancado pela polícia por estar fazendo sexo em uma YMCA. Lip nem pestaneja para discutir o assunto ou ser homofóbico, ele havia trabalhado em boates e era mais tolerante perante homossexuais do que perante negros. O tal pobre conservador, assim, era bem menos conservador perante as minorias que ele conhecia e convivia, um elemento interessante não apenas da narrativa mas da realidade sobre os preconceitos sociais mais diversos. Quanto mais as pessoas conhecem o Outro, os diferentes, menos são preconceituosas, o que nesse conjuntura pode ser uma lufada de esperança.
Outro momento interessante, acaba defendendo-o da crítica de ser um filme de salvador branco comum. Em dado momento, Lip tenta ensinar à Shirley como combater o racismo(que, notem, é justamente a principal crítica ao complexo de salvador branco). Shirley, aí, dá um esporro homérico em Lip. A atuação brilhante de Mahershala Ali explode. E a mensagem é simples: como pode um branco me ensinar a ser um negro melhor, como ele poderia ser capaz de entender as dores que sinto? Perante esses questionamentos, Tony Lip e o filme simplesmente se retraem em silêncio. É quase uma assunção de culpa em meta-narrativa, quase como o filme dizendo “não tenho como saber” e se retraindo em sua incapacidade perante tal. É um momento potente que não deve ser apagado pelos demais momentos do filme. Fica um salvador branco mais envergonhado.
Nessa impossibilidade de avaliar o filme, dado que o sujeito “pobre” não está presente no debate público para opinar(apenas para ser atacado como conservador, racista e salvador branco), o que nos resta fazer? Bem, nos resta não cometer os mesmos erros. Nos resta não invisibilizar por completo a questão de raça e a questão de classe. E nos resta não acreditar que é na estrita narração “jornalística” dos eventos históricos que está o valor.
Em complemento às críticas de ser um filme racista e salvador branco, vem um louvor à Infiltrado na Klan, filme de Spike Lee. Bem, Spike Lee é um gênio. O filme ainda teve ajuda de outro gênio, Jordan Peele. Mas Infiltrado na Klan não é lá um grande filme.
Para começar a discutir Infiltrado na Klan, eu queria partir da ideia de que o relevante é a “estrita narração jornalística”. Tal qual Green Book, o filme de Spike Lee também é baseado em uma história real, só que da década de 70. Ron Stallworth foi o primeiro detetive negro de Colorado Springs e, em suas memórias, narra como se infiltrou na Ku Klux Klan, movimento supremacista branco dos EUA. Ele também narra como que nos primeiros três anos como detetive, ele se infiltrava no movimento antirracista e de libertação negro, prendeu vários seguidores de Kwama Ture, inclusive com flagrantes forjados. Após tanto tempo, ele percebeu que se sentia mais confortável infiltrado do que na delegacia, onde sofria constantes chacotas e ameaças. E, só aí, ele tem a ideia de infiltrar a KKK.
No filme, contudo, ao invés de retratar Stallworth como essa figura contraditória, cheias de conflitos que se redime e etc, Spike Lee optou por encurtar o tempo em que Stallworth ficou infiltrado no movimento negro para… um dia. Um dia. E também resolveu mudar a razão de sua mudança: ao invés de uma complicada relação de estar mais satisfeito infiltrado entre “criminosos”(que não eram nada criminosos…) do que na delegacia de polícia, a motivação do filme é, óbvio, uma mulher. E, aí, o filme desenvolve uma super-insossa relação amorosa entre os dois.
Nenhuma dessas críticas é original. Elas são tiradas diretamente das críticas do diretor de “Desculpa por te incomodar”, Boots Riley. Ao falar sobre Infiltrado na Klan, Boots fez questão de afirmar que Spike Lee é um gênio e essencial para o desenvolvimento do cinema mas que esse filme seria apologético à polícia. Ao descrever o próprio filme Desculpa Por Te Incomodar, Riley comenta que o filme é visto como estranho porque, bem, retrata a luta de classes.
Existe um sujeito oculto no debate a respeito de Infiltrado na Klan: o movimento negro, o que é muitíssimo curioso. Nenhum correligionário de Kwama Ture se levantou para dizer que Stallworth o incriminou sem razão, forjou provas ou coisa que o valha. Talvez estejam mortos. Talvez prefiram não falar mal de dois irmãos negros. Talvez simplesmente acreditem na redenção real de Stallworth, uma que não vimos no filme.
Ao retratar Stallworth como antirracista desde o comecinho do filme, Spike Lee nos privou de uma história nuançada com diversas contradições e humanidades. Nos privou, também, de ver a história de um homem que errou e mudou.
E, aqui, os dois filmes se encontram num ciclo curioso: Green Book é mal-visto, também, por contar a história de redenção de um homem que começa o filme muito racista e termina o filme menos racista; Infiltrado na Klan é bem-visto talvez porque poucos saibam que seu personagem principal não é um antirracista desde o começo, mas um nefasto policial negro que perseguia negros mas que, enfim, se percebe como negro e passa a lutar contra o racismo.
Mas toda redenção soa como falsa na era dos tribunal de internet. Melhor contar histórias sobre heróis ilibados, mesmo que elas não tenham nada a ver com a verdade…
*O título é uma referência a um dos primeiros filmes “salvador branco”, Adivinhe Quem Vem Para o Jantar, sobre uma moça branca que leva o noivo negro para conhecer a família. O filme inspirou a trama de Get Out!, do brilhante Jordan Peele e, apesar de ser hoje muito criticável como um filme racista ou salvador branco, foi louvado como progressista na época de seu lançamento, em 1967.